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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Soneto de tortura e desencanto - Ângelo Monteiro



















Não sei que angústia me incomoda o peito
que não posso estar firme nem parado.
Com o pensamento sempre desvairado,
falta-me calma até quando me deito.

A noite vago as ruas, odeio o leito,
não durmo, não descanso, não me enfado,
não fujo, não me mato, e o rosto irado
até de rir perdeu a forma e o jeito.

Por isso não te admire, amiga minha,
que ternura hoje em dia me careça
na voz, que tantas vezes te acarinha.

Mas é que sofro de sentir diverso:
e onde repousarei minha cabeça,

se a dor humana não couber num verso?

sábado, 26 de outubro de 2013

O vendedor de ostras - Carlos Maia




          Costumava descer duas paradas antes, quando ia ao Recife Antigo, para atravessar andando as duas pontes e apreciar o rio iluminado pelas luzes da noite.

          O pai, poeta e desempregado, lhe dera 200 livros para ele vender, já que não podia lhe dar uma mesada. Aquela noite estava fraca, só tinha conseguido vender três livros. Estava sentado na calçada da Rua da Moeda tomando um Carreteiro quando um vendedor de ostras sentou-se ao seu lado e começou a se lamentar, pois vinha de Barra de Jangada a pé e não tinha conseguido vender quase nada.

          Ele disse para o vendedor:
          - Olha meu irmão, eu não gosto de lamentação não! Toma aí um copo de vinho pra relaxar...

          O vendedor o olhou admirado, parou um instante e retrucou:
          - Tu é um cara rochedo! Eu vou aceitar! Quer umas ostras?

          E assim eles ficaram bebendo a noite toda, e se despediram como os dois maiores amigos do mundo; para nunca mais se verem...

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Acta est fabula - Esman Dias




A Domingos Alexandre

Morre o poeta.
Morre, com ele, toda a luz do mundo:
o espaço do seu rosto, o mar profundo,
a aurora e um pôr-do-sol escandaloso.

Morre o poeta e morre o Ocidente.
E o Oriente. E os pontos cardeais.
Morrem as estrelas. Morre o firmamento.
Morrem as sombras do pântano e o arvoredo,
todos os santos, todos os escribas,
os dias da semana, a quarta-feira.

E o próprio tempo, imóvel, que agoniza:
foi-se o olhar que no relógio via
a marcha, alegre e triste, dos ponteiros.

Morre o poeta.
Morre a alegria.
Morre tudo o que flui: morre a poesia.

Morre o poeta.
E morre o mundo inteiro. 

sábado, 19 de outubro de 2013

Domingo, na matinée - Alberto da Cunha Melo




















Não, não sou o cowboy solitário,
mas aquela nuvem de poeira
atravessando a planície:
me falta coragem de entrar em Abilene,
pedir um trago no balcão
e perguntar grosso pelo facínora,
bebo aqui mesmo e sinto medo da noite;
não tenho revólver com marcas na coronha,
nem cavalo ensinado que me desamarra com os dentes,
sou o índio sem rosto, que só sabe cair;
não sou o cowboy solitário:
não salvo Susan da quadrilha de Jesse,
nem do mau casamento,
mas brigo com os espinhos para espiá-la no banho.


Abril/2001

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Cartas de meu avô - Manuel Bandeira

















A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado...
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala...

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também

A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme...
A dor... a visão da morte...
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu...
Do meu - fruto sem cuidado
Que inda verde apodreceu.

O meu semblante está enxuto.
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças...

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que, meu avô
Escrevia a minha avó.


Quando você se sentir sozinho, pegue o seu lápis e escreva.
No degrau de uma escada, à beira de uma janela,
no chão do seu quarto. Escreva no ar, com o dedo na água,
na parede que separa o olhar vazio do outro.
Recolha a lágrima a tempo,
antes que ela atravesse o sorriso e vá pingar pelo queixo.
E quando a ponta dos dedos estiverem úmidas,
pegue as palavras que lhe fizeram companhia
e comece a lavar o escuro da noite,
tanto, tanto, tanto... até que amanheça.



Rita Apoena

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Jornal das Pequenas Coisas




Não é que o mundo seja só ruim e triste. 
É que as pequenas notícias não saem nos grandes jornais.
Quando uma pena flutua no ar por oito segundos, 
ou a menina abraça o seu melhor amigo,
nenhum jornalista escreve a respeito.
Só os poetas o fazem.



Rita Apoena

Voz por toda a parte - Natanael Lima Jr.




um acordo fiz contra o acordo:
sangrar de vez a voz
e ser grito e lábios eternamente

um acordo fiz contra o acordo:
ser palavras qual extensão da vida
e ser mãos, olhos e alma

um acordo fiz contra o acordo:
jamais limitar os sonhos
e viver até desflorescer

um acordo fiz contra o acordo:
jamais ressuscitar a dor,
ser amor presente
e voz por toda parte


*Do livro “À espera do último girassol & outros poemas”