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terça-feira, 29 de abril de 2014

Conversar - Octavio Paz




Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.
O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.
A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

Dimensão Lúdica - Lucas Lopes


















Eu vi a lama no meio das canelas
Vi a tarrafa parada no ar
Comi a caldeirada de Itapissuma
Cheguei na Ilha de Itamaracá

Descobri que as lagartas de fogo
Levavam flores bem mais bonitas
Belas, oração de ano novo
Velas pra Iemanjá

Vi coração de peixe bater
Pescador fazer fogueira
Queimando palha pra comer
Salgando o peixe na beira

E o pé do galego fervia
O irmão da ostra passava
Tá graúda, ô galego
Traga mais uma, gelada

Se de dia tem maré cheia
A noite tem rede arrasta
Puçá, samburá e agulha
Facho de luz que passa

Memórias de uma infância
E o sol quase chegando
Vou dormir que nem criança
lembrando, lembrando, lembrando...

Meditação Sobre as Águas - Ângelo Monteiro




















Nunca nos repetimos: ainda ante velhos fantasmas.
No búzio em que o escuto o mar não se perdeu.
No fluir dessas águas persigo a luz da esfera.
Nas margens desse mar que pátria renasceu? 

Se a doutrina do mar não for a verdadeira,
as outras não o são. (Escuto o mar, que é meu.)
Tanta nave sobre essa antiga casa:
casa tão ampla ao nosso parco ser.
E onde a chave perdida
sobre as ondas que vêm e as ondas que vão?

Sem Ti - Eugénio de Andrade




E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
 
Fonte: http://interludioemflor.blogspot.com/

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Discurso sobre o vazio - Ângelo Monteiro



Dura necessidade
de invocar os objetos,
como se dependêssemos
deles para existir. 

Como se o seu vazio
fosse menor que o nosso:
nós que usamos palavras
por medo do silêncio.

domingo, 27 de abril de 2014

Cigarra Matinal - Erickson Luna e Nelson Torreão Jr.




















As canções são algo de calmante
nas minhas manhãs
Com chuva, com sol ou com nada
Eu me sinto bem

Quando nada
Uma frase, um acorde
Acompanha o ser só
Quando só
Eu vejo que estou triste
E começo a cantar, e cantar

O compasso é o dia que passa
Maior e menor
E a medida
É uma concha de lata, ferrugem e suor

Mas se as notas
Pretendem calar o inqueto rumor
O que fazem
É abrir um veio
Por onde sangrar minha dor

Ela canta, pobre ceifeira - Fernando Pessoa





















Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !

A ciência pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !

sábado, 26 de abril de 2014




















DEPOIS
Nem a coluna truncada:
Vento.
Vento escorrendo cores,
Cor dos poentes nas vidraças.
Cor das tristes madrugadas.
Cor da boca...
Cor das tranças...
Ah,
Das tranças avoando loucas
Sob sonoras arcadas...
Cor dos olhos...
Cor das saias
Rodadas...
E a concha branca da orelha
Na imensa praia
Do tempo.

Mário Quintana
In Melhores Poemas

O Silêncio que desperta - Samuel Costa























Vem em meus sonhos...
Entre lírios e rosas
Entre gritos & prantos
Entre suspiros de prazer
Em doce e endêmico
Lactucário...
Embriaga-me...minha divina musa
Com o teu eflúvio sutil
Teu raro olor
Entre o aroma de lírios e rosas
Entre gritos e espasmos
De prazer...
És a custódia de todos...os meus desejos!
Mais sagrados
Mais profanos
Peregrina onírica
Que vem me visitar...
Em horas extremas
Com estranhos desejos

Certeza - Octavio Paz




Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses. 

 
 in "Dias Hábeis" 
Tradução de Luis Pignatelli

Soneto Oco - Carlos Pena Filho

























Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.


















Tocam-me de repente o rosto
as lufadas de luz. Eu nada
vejo mas estou incluído
no tempo, na manhã que chega.
Voltaste como um grande amigo
e por trás de mim colocaste
as tuas mãos sobre os meus olhos,
mas não foste reconhecido.
Pouco depois, quando as palavras
fluíram fáceis, novamente,
eu compreendi que estavas perto
e meu poema foi crescendo.
Ó vento conterrâneo! ó nuvem!
passai depressa para os outros
poetas, mais necessitados
e mais sozinhos do que eu.
Põe-se a meu lado quem defende
da malcriada ventania
o meu poema crepitando
como chama em cima da mesa.

Alberto da Cunha Melo
ORAÇÃO PELO POEMA - VI
Foto: © Esmar Abdul5 / After

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Discurso - Cecília Meireles




E aqui estou, cantando.


Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.


Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.


Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, 
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.


Pois aqui estou, cantando.


Se eu nem sei onde estou, 
como posso esperar que algum ouvido me escute?


Ah! Se eu nem sei quem sou, 
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

Bússola - Maria Helena de Morais Sato




Chego
a um mapa
perdido.
Nem mesmo
um vento leste!
Mapa sem dono,
sem nome,
sem porta para bater.
Ergo uma
tenda
e me estendo
entre dois pontos
cardeais.


De Areias e Ramas
São Paulo: Edições Subiaco, 2006
ISBN85-86793-38-8

Uma Casa - Alberto Alexandre Martins























São espessas as paredes

espessa a massa
a areia o cimento

espessa toda a matéria
com que se constrói
uma casa: vigas
de afeto, alimento

as várias espécies
de sustento
pra tudo o que circula
sob o vão das telhas:

pêlos do corpo, amor
bebedeira, esquecimento

espessos os alicerces
de silêncio
em que repousa a casa





















A Cor do Tempo

A cor do tempo
é aguada,
cor de neblina
e azul.
A cor do tempo
usa óculos,
requebra
numa bengala.
A cor do tempo
é sem cor,
parece filme
antigo.
É um tom
de pianola
ou, talvez,
de violino.
A cor do tempo
é sem tempo.
E o sem-tempo
é a cor que desbota
num "me lembro"
e acaba
em esquecimento
aonde for.

Sylvia Orthof



















Procura

Meu dedo indicador
Que hoje a calosidade enruga,
Engana o observador,
Pois não são calos e sim verrugas
Que ganhei ainda criança,
Apontando o céu à procura
Da dita estrela de esperança,
Até que desisti, com amargura.
Agora, tanto tempo passado,
Ficaram o dedo marcado
E esta mania "démodée",
Achando , vê se pode,
que a estrelinha é você...

Luiz Antonio Bonini
SP, 26/11/1987

Dia de Outono - Rainer Marie Rilke



















Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre os campos.

Ordena aos últimos frutos que amadureçam;
dá-lhes ainda dois dias meridionais,
apressa-os para a plenitude e verte
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, assim ficará por muito tempo,
velará, lerá, escreverá longas cartas
e vagueará inquieto pelas alamedas acima e abaixo,
quando caírem as folhas.

















O QUE O VENTO NÃO LEVOU...


No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:

um estribilho antigo,
um carinho no momento preciso,
o folhear de um livro de poemas,
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...


Mário Quintana ,
in A cor do invisível

quinta-feira, 24 de abril de 2014


















O AFERIDOR

Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico do sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia o meu pai)

Manoel de Barros,
in Ensaios Fotográficos















Poema

As pessoas
que nos trazem alívio, abraços, acolhimento,
amor
são semelhantes a sinfonias
se prolongando
pelo cosmos .....................

Ramos Sobrinho - Olinda, 2014


















Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele 
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso

Maria Teresa Horta, in “Destino”

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Amor Meu Grande Amor - Ângela Rô-Rô

IEREVAN - Sérgio Leandro




Agora que o silêncio invade a casa,
eu penso na morte com mórbido carinho...
penso no amor que não foi,
e que, talvez, nunca será.
O dia avança e a vida transcorre
entre acertos, desvarios e descaminhos.
Não faz sentido ser um homem sem sonhos.
Deixa fervilhar dentro de ti alguma revolução, por menor que seja.
Apesar da morte, do medo da morte ou do desejo da morte,
o homem parece resistir ao silêncio.
Baila dentro das trevas como uma estrela rebelde
e não te esqueças do teu Deus, que te viu menino sem palavras
e hoje te vê amante do verbo...
Agora que o medo é fogo e que a vida dói,
eu penso no bálsamo dos teus beijos,
lembro com certa mágoa do carinho de tuas mãos.
Não me leves a mal por pisotear as flores que me deste:
Eu guardo com carinho o vaso trincado do nosso amor...
não me leves tão a sério.
Eu tenho um coração mortal para amar coisas eternas.
Por onde andarão teus pés?
eu faço longas caminhadas para dentro de mim mesmo.


27/01/2011

terça-feira, 22 de abril de 2014

Arrabalde - Mário Quintana


















As cores alinham-se obedientes mas meio tortas
Como nos meus primeiros exercícios de caligrafia...
Chego a sentir o cheiro da tinta azul nos dedos
Em invisíveis borrões. Olho os meus dedos:
Leque metafísico.Quando deixarei de olhar os meus dedos?
O mundo é mais vasto.A vaca muge,
Puxa-me ao presente...Vasto,vasto é o pasto!

In Apontamentos de História Sobrenatrural

segunda-feira, 21 de abril de 2014

JAAAAAAAAAAAAAAANNNNNNIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIISSSSSSSSSSSSSSSS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!




















Passear pelas alamedas
Alagadas pela chuva
O cheiro da terra
E da mata molhadas
Invadindo os meus pulmões...
Ganas de navegar em Andrômeda!!!
Velozmente por n dimensões
Expandir-me até virar um deus
Ou simplesmente um andarilho
Um viking dos corações femininos
Queria nessa hora poder ouvir
Cazuza, Cássia Eller, Legião Urbana,
Lenine...
Me sinto tão só...
Queria um coração amigo
Em que pudesse recostar no ombro
Minha mãe se encontra numa UTI
E eu não queria que ela fosse embora...


Carlos Maia
21/04/14

Tempo Perdido - Legião Urbana

Mudaram as Estações - Cássia Eller

Primeiros Erros - Capital Inicial

Sutilmente - Skank

domingo, 20 de abril de 2014

Meu Bom José - Georges Moustaki

Sentidos - Sérgio Leandro




Trago um verso triste
Para um mundo que brinca carnaval,
Trago um folguedo
 Para um mundo que conta seus mortos.
Quantos sonhos resistem a um mundo de pesadelos?
Trago um verso de amor
Para falar do amor que não foi,
Do amor que deveria ter sido...
Trago à vida um sonho passado
Para iluminar as trevas do presente,
Faço a mesma oração desesperada
Ao Deus que prefere o silêncio ao tumulto dos homens.
Quanto tempo deve durar sobre a mesa a cerveja da reflexão?
Dois mil cálices do vinho da discórdia
Não matariam a sede humana de rebelião...
Trago um verso lapidado
Para um mundo que desmorona,
Trago um discurso inflamado para homens que tapam os ouvidos...

sábado, 19 de abril de 2014

460 anos da cidade de São Paulo


"...esta cidade
esta dona pétra
esta cidade
de beleza ferina
executiva de saia cinza
me embebe até a medula
de uma dulce amara ternura
entre fera e bela
entre estrela e estela 
esta
com sua graça petrina
multi-
vária multi-
tudinária
cidade minha (...)"


Haroldo de Campos

Quem - Manuel Alegre
























Não sei como se ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba
nem se há palavra para voltar
do grande rio do
esquecimento.
Não sei se no terceiro dia
alguém me espera. Ou se
ninguém.
Em cada poema levanto a pedra
em cada poema pergunto quem.

Canção Minha - Sérgio Leandro




Quem me dera escrever um poema
Que fizesse adormecer os homens
E acordar os poetas.
Quem me dera uma canção em chamas
Que atravessasse a noite
Sobre esperanças mal iluminadas...
Eu, então, seria um homem feliz
Entre meus passos sem rumo
E teus olhos envoltos em brumas de silêncio...















BARRO NU (Os Arautos Negros)

Erguem-se visagens fúnebres do lábio
como batráquios terríveis na atmosfera.
Pelo Saara azul da Substância
caminha um verso cinza, um dromedário

Fosforesce um esgar de pesadelos cruéis.
E o cego que morreu repleto de vozes
de neve. Madrugar o poeta, o nômade,
é um dia áspero para ser homem.

As Horas seguem febris e abortam
nos ângulos rubros séculos de ventura.
Quem corta o fio, quem desfaz
impiedosamente os nervos,
cordéis já gastos, na tumba?

Amor! E tu também. Pedras gastas
se delineiam na tua máscara que se rasga
Contudo, a tumba é
um sexo de mulher que conquista o homem!

César Vallejo
(Trad. Jorge Henrique Bastos) 

sexta-feira, 18 de abril de 2014

























TRANSNACIONALISMO

declaro
que meu tempo
com as árvores
evaporou

sou
simplesmente
possuidor de sandálias
e sonhos

ontem
ao me recolher
por sobre
a sombra
de uma paineira

me dei conta que o mundo
e seus remidos escravos
não estão nem ai

esquecido
o terreno baldio
descartou fronteiras

pois que
ramo
raiz
caule
e flora

é o tempo
sem giz
ali
sem glória.


Carlos Gurgel