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sábado, 31 de outubro de 2015




























ÁGUA

Tudo na terra se eriçou, a sarça
criou raízes e a linfa verde
mordia, lentamente desprendeu-se a pétala
até ser a queda a única flor.
A água é diferente,
não tem regras, somente formusura,
desliza por cada sonho colorido,
recebe lições claras
da pedra
e nesses misteres elabora
os deveres intactos da espuma.

PABLO NERUDA

Pink Floyd live in Pompeii




























TÃO POUCO

Sondar
a linguagem das trevas
dormir
na neve dos limites
atravessar
flores distraídas
Decifrar
numa pedra fria
letras a arder
entrar
em comboios remotos
no olho gigante
das estações do fim do mundo
Ser
um sinal
lançado ao acaso na noite
deixar
noutra boca
o gosto de uma ausência
Temos tão pouco tempo
tão pouco sonho
tão pouco.

ERNESTO SAMPAIO



























Tu chegas, e eu sinto que cheguei primeiro, sem ter chegado
ainda. É a minha vontade de estar onde tu estás, com um olhar
melhor para todas as coisas, e com os braços vazios para os
encher de ti.

Joaquim Pessoa
in ANO COMUM, 2.ª Ed.
arte: Monserat Gudiol

Muddy Waters plays "Manish Boy"

B. B. King - The Thrill Is Gone (Live at Montreux 1993)


























Quando a terra se converte num altar,
a vida se transforma numa reza.

(Mia Couto)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015




















NAUFRÁGIO

vasculha entre teus pertences
uma lembrança do mar
caminha com ela a vida toda
vai e veleja
invade a mente de quem não acredita
mais nas estrelas e luas
de todo e qualquer desânimo
que se mostre sem forças
e grite
e ressoe com todo seu esplendor
que porventura o naufrágio
por onde boiamos
é nada
quando se pensa na ressurreição
dos ossos
e da manhã
com todas as suas flores
e magias.

Cgurgel















As eras passavam
Como fumaça
Diante dos seus
Olhos atônitos.
Toda a grandeza
Da evolução do cosmo
Se deparava
À sua frente
Numa sucessão
Estonteantemente rápida.
16 bilhões e
500 milhões de anos
Em poucos segundos.
Todo o processo
De evolução do homem
Se resumia a
Um milésimo de segundo.
Ele teve a sensação
Da profunda transitoriedade
Das coisas, das palavras
E dos sentimentos.
Só uma coisa pairava
Como uma névoa amorosa
Sobre isso tudo:
O Eterno!

Carlos Maia
08/09/15 

terça-feira, 27 de outubro de 2015




















SÉQÜITO
soberba é a paz de quem já partiu
como uma bigorna preta e sem sorte
velame da estrada entre cactus e flores
rejunte de escarros, poeiras e piolhos
uma face floresce sobre a borra do capim
utensílio do que a cisterna da hora ora
fuligem planta do barro da cruz que sangra
tal o monte entre choros e velas
o corpo entre o azogue do calor se trai
fermento que aos poucos apodrece
roupa, chaves, um dinheiro e faca
bandoleiro da mata que corre e berra
o cortejo de vultos se aproxima da lápide
nervosa, assassina, desconhecida e parda
richicoteia o espírito sobre o sol que não tarda
cadáver podre sobre as carrancas do vazio
ao longe os olhos de quem vive espanta
a carcaça da calçada se cobre de couro
e estopim
o cheiro da morte se espalha e escarra
como um lúgubre piso que se esconde
e gralha
e como um véu a partida não tem falha
nessa ilha de muitos corpos e asmas
corte da alma como tez fantasma
por baixo da terra de adubo tão canalha.
Cgurgel

Antonio Nóbrega




























AUTORRETRATO

Interiorano,
Nascido na zona da mata pernambucana,
Nunca soube
Usar gravata:
- Apenas no casamento,
Quiçá na morte.
Cidadão do mundo
Odeia profundamente as fronteiras e ama os diferentes.
Poeta? Não sabe, não tem certeza...
Mas, insisti.
Funcionário público cheio de poeira,
Achou na poesia e no uísque,
Uma maneira,
De respirar sob os escombros,
Da dita sociedade capitalista.
Quis ser músico, não tinha talento;
Guerrilheiro, não pôde,
A pólio o acertou,
Qual mercenário estadunidense,
Numa esquina mal iluminada,
Numa certa manhã de novembro.
Acreditou um dia em Deus, no outro em Nietzsche.
Em matéria de sonho: um suicida profissional.

Itárcio Ferreira
Fonte: http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/

domingo, 25 de outubro de 2015






















Vida
Vale vivê-la
Se de quando em quando morremos
E o que vivemos
Não é o que a vida nos dá
Nem o que dela colhemos
Mas o que semeamos em pleno deserto.

Mia Couto





















IDÍLIO

põe
desce meu corpo com teu
líquido sangue
apascenta meus ombros
e o que te nutre e rega
escala minha calma e a selva
por onde descubro teu perfume
e meu couro que te cobre
vem
escolhe meus ombros
ao redor da noite que tanto te elastece
como planta a te molhar
enche meu corpo com teu vinho
tinto
saliva o sonho da vida
desse tanto que te sinto
beija-me a boca entre a bruma
dessa lua louca
tua garganta é como um pouso
espalhando sua carícia sobre meus céus
embebeda-me mais
tira desse corpo
a última gota do seu último gole
e se entrega
como uma paixão sem hastes
falando baixinho
que o desejo é como instinto
que nem adormece
fruto do profundo desse horto
como a lasciva
que embriaga e amanhece
entre a cor desse instante
que me marcou e que me destes.

Cgurgel

sábado, 24 de outubro de 2015



























SEGREDOS

Vinha meio nu
Trazia uma cesta de vime cheia de amoras
que colhera nas margens do rio
Passara a tarde toda de silvado em silvado
Na sua mão direita um pequeno arranhão
- Tão quente tão quente
esse verão...

Jorge Sousa Braga
[Pátria pequena]



























Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.
Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio nocturno.
Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [...] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [...] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.

Álvaro de Campos




















"Meu Credo:

É uma bênção especial pertencer entre aqueles que podem dedicar suas melhores energias para a contemplação e exploração de coisas objetivas e atemporais. Quão feliz e grato eu sou por ter recebido essa bênção, que dá um grande grau de independência em relação ao destino pessoal de alguém e a atitude de seus contemporâneos. No entanto, essa independência não deve nos habituar à consciência dos deveres que constantemente nos prendem ao passado, presente e futuro da humanidade em geral.
Nossa situação na terra parece estranha. Cada um de nós aparece aqui, involuntariamente e sem ser convidado, para uma estadia curta, sem saber o porquê e para quê. Em nossa vida diária sentimos apenas que o homem está aqui para o bem dos outros, para aqueles a quem amamos e por muitos outros seres cujo destino está ligado com o nosso. Muitas vezes me perturba a ideia de que a minha vida é baseada em grande parte no trabalho dos meus companheiros seres humanos, e estou ciente da minha grande dívida para com eles.
Eu não acredito no livre-arbítrio. Palavras de Schopenhauer: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”, me acompanham em todas as situações ao longo de minha vida e me reconciliam com as ações dos outros, mesmo que elas sejam bastante dolorosas para mim. Esta consciência da falta de livre arbítrio me impede de levar a mim mesmo e aos meus colegas muito a sério como indivíduos de ação e decisão, e de perder o meu temperamento.
Eu nunca cobicei riqueza e luxo e até mesmo os desprezo de certa forma. Minha paixão pela justiça social muitas vezes me levou a um conflito com as pessoas, assim como a minha aversão a qualquer obrigação e dependência que eu não considero absolutamente necessárias. Eu tenho um grande respeito pelo indivíduo e uma aversão insuperável pela violência e o fanatismo. Todos estes motivos me fizeram um pacifista apaixonado e antimilitarista. Sou contra qualquer chauvinismo, mesmo sob o disfarce de mero patriotismo.
Privilégios com base na posição e propriedade sempre me pareceram injustos e perniciosos, assim como qualquer culto exagerado à personalidade. Eu sou um adepto do ideal da democracia, embora eu saiba bem as fraquezas da forma democrática de governo. A igualdade social e a proteção econômica do indivíduo sempre me pareceram os objetivos comuns importantes do estado.
Embora eu seja um solitário típico na vida diária, a minha consciência de pertencer à comunidade invisível daqueles que lutam pela verdade, beleza e justiça me impede de me sentir isolado.
A experiência mais bela e mais profunda que um homem pode ter é o sentido do mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como de todo esforço sério na arte e na ciência. Aquele que nunca teve essa experiência parece-me que, se não está morto, então, está pelo menos cego.
Perceber que por trás de tudo o que pode ser experimentado há uma coisa que a nossa mente não pode compreender, cuja beleza e magnificência nos alcança apenas indiretamente: isso é religiosidade. Neste sentido, sou religioso. Para mim, basta questionar estes segredos e tentar humildemente entender com a minha mente uma mera imagem da estrutura elevada de tudo que existe”.

Albert Einstein

sexta-feira, 23 de outubro de 2015




























No fim tu hás de ver
que as coisas mais leves
são as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...
Mario Quintana

























Por uma só fresta
entra toda vida
que o sol empresta...
Alice Ruiz





















Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
Manuel Bandeira





















A pé e de coração leve enveredo pela estrada aberta
Saudável, livre, o mundo à minha frente
À minha frente o longo atalho pardo levando-me aonde eu queira
Daqui em diante, não peço boa-sorte.
Boa-sorte sou eu...

Walt Whitman



















Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira
Arte: Amedeo Modigliani

quinta-feira, 22 de outubro de 2015



















Poema para Iludir a Vida

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes, 
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos
[portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje
[o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

Fernando Namora,
in "Mar de Sargaços"



























Esperei-te contra toda a esperança,
alheio à bruma circundante
e surdo às vozes que me garantiam
a suposta evidência
da tua impossível vinda.
Esperei-te ignorando o nevoeiro
e indiferente ao vendaval
em que quase me perdia.
Até que chegaste um dia
e nunca mais deixou de ser Natal.

Torquato da Luz

quarta-feira, 21 de outubro de 2015






















Poetas não tem coerência,
porque incoerente é o amor,
Não obedece regra alguma que a vírgula vier impor,
Poeta rima com rima o que lhe der na telha,
Com redundância de Drummond,
Com a alegria de Miró,
No caminho tinha uma pedra,
Onde Estará Norma para achar,
Essa regra que nome não dou,
Quando acendo a centelha da palavra
Da palavra amor,
Pois é luz, é sonho, é esperança,
Ser poeta é ser adulto é ser criança,
É entender com loucura o eu e o você,`
É pedir licença a ortográfia,
Pra mudar a língua pela geográfia,
Bagunçar o português e toda regra que nele havia.
Aninha Barbosa


















Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas 
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te.

Al Berto, in 'Salsugem'

terça-feira, 20 de outubro de 2015






















AVISO PRÉVIO

Por motivos inconfessáveis,
antes de ajustar o papel
na máquina, o mundo me chama
(aos gritos) mas vou devagar.
Teus escravos têm outro jeito
de caminhar sobre o tapete,
e se curvam de outra maneira
às tuas novas injunções.
Não participo dessa urgência
com que te vestes para o fim,
e não me deves mais a casa
alta, diante dos nascentes.
Preciso apenas de um espaço
onde gravar uma palavra:
só não a gravo no teu corpo
porque ele dura muito pouco.
Ó terra, terra, que serias
sem teus poetas pequeninos,
que bebem tanto e cavam tantas
fontes na tua superfície?

Alberto da Cunha Melo



























Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.

Cecília Meireles
Fonte: Rosa Maria Hubinguer



























Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu.

Fernando Namora, "Poema de Amor"
Fonte: Rosa Maria Hubinguer

domingo, 18 de outubro de 2015
















ENLEVO

Eu olho você grande e distante
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro.

Flora Figueiredo