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terça-feira, 31 de dezembro de 2019





Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Este poema de Drummond salvou a minha vida. Há uns quinze anos mais ou menos, estava numa depressão fortíssima, e estava pensando em tomar 1080 (veneno de rato), quando num grupo que eu fazia parte no Orkut (De quem é o poema?), postaram este poema. Obrigado Drummond! (Carlos Maia)



















NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 28 de dezembro de 2019























Aos que vierem depois de nós
Bertolt Brecht(Tradução de Manuel Bandeira)

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar. 

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.


Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles. 
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra. 

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


Bertolt Brecht nasceu em Augsburg, Alemanha, em 1898. Em 1917 inicia o curso de medicina em Munique, mas logo é convocado pelo exército, indo trabalhar como enfermeiro em um hospital militar. Aquele que iria se tornar uma das mais importantes figuras do teatro do século XX, começa a escrever seus primeiros poemas e cedo se rebela contra os "falsos padrões" da arte e da vida burguesa, corroídas pela Primeira Guerra. Tal atitude se reflete já na sua primeira peça, o drama expressionista "Baal", de 1918. Colabora com os diretores Max Reinhardt e Erwin Piscator. Recebe, no fim dos anos 20, instruções marxistas do filósofo Karl Korsch. Em 1928, faz com Kurt Weill a "Ópera dos Três Vinténs". Com a ascensão de Hitler, deixa o país em 1933, e exila-se em países como a Dinamarca e Estados Unidos da América, onde sobrevive à custa de trabalhos para Hollywood. Faz da crítica ao nazismo e à guerra tema de obras como "Mãe coragem e seus filhos" (1939). Vítima da patrulha macartista, parte em 1947 para a Suíça — onde redige o "Pequeno Organon", suma de sua teoria teatral. Volta à Alemanha em 1948, onde funda, no ano seguinte, a companhia Berliner Ensemble. Morre em Berlim, em 1956.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

















Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
(...)

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas.

(...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

(...)

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019























CHEGANDO EM CASA

Chegando em casa 
com a alma amarfanhada 
e escura 
das refregas burocráticas 
leio sobre a mesa 
um bilhete que dizia: 

- hoje 22 de agosto de 1994 
meu marido perdeu, deste terraço: 

mais um pôr de sol no Dois Irmãos 
o canto de um bem-te-vi 
e uma orquídea que entardecia 
sobre o mar.


Affonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Aldous Huxley





















Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019



POEMA DE NATAL

— Sino, claro sino,
tocas para quem?
— Para o Deus menino
que de longe vem.

— Pois se o encontrares
traze-o ao meu amor.
— E que lhe ofereces,
velho pecador?

- Minha fé cansada,
meu vinho, meu pão,
meu silêncio limpo,
minha solidão.

Carlos Pena Filho

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019


























SOLUÇOS DO DERRADEIRO CANTO

Sonhei voando entre catedrais e cemitérios
Pó cinza e a alma pomba azul no céu
Velas acessas sobre o mármore negro
Sentinelas agora sem forma e sem cor.

Rastejam vermes fiéis companheiros
Famintos e sequiosos de uma carne fria
Na parede uma moldura desbotada
Onde já se vê gasta a juventude.

Um terno escuro para a solenidade
A posse nos termos do obituário,
E na gaveta murmura o triste diário.

A luz então se fragmenta no espaço
E o tempo que assistia a tudo agitado
Agora dorme silenciosamente sem asas.


Aldo Lins.

domingo, 22 de dezembro de 2019


























ESTIGMA
"A minha alma é um grito.
E toda a minha obra é um comentário
sobre esse grito."
(Nikos Kazantzakis)

Acordei chorando
Jorrava de dentro de mim
Toda uma denúncia de tudo aquilo que sou.

Vagabundo, maluco, mendigo, moribundo,
anarquista, amante, poeta e sonhador.

Não me conheço,
Aliás, só por fotografia
Não sou lavoura nem edifício.
Sou um homem que passou fome
Escarrou sangue
E foi preso como anarquista.

Também não sei mais sorrir
A minha pele hoje
É uma tatuagem cheia de escamas.

Até o meu canário fugiu da garganta
Deixando minha alma de vidro
Perdida pelos escombros
Útero da solidão.

Meus trinta anos
O que direi a eles
Quando reinar o eclipse da despedida
Haverei de doar meus olhos
Para alguém poder te ver.

Pois quem sabe um dia
Eu, hóspede da utopia
Assombrado com a sombra
Dos meus próprios sonhos
Seja encontrado sem vida
Sentado num cabaré vazio.


Aldo Lins
Pintura: Edmund Munch (O Grito)

sábado, 21 de dezembro de 2019




















EVANGELHO DE AQUÁRIUS

Vai
Caminha sobre as águas
Transforma as tuas mágoas
Em gaivotas azuis sobre o mar
Joga as cinzas, todas as cinzas
Nos túmulos dos verdugos
Que hoje nasceu a paz.

Prende a tua dor entre as ruínas
Ergue duas colunas de vidro entre as colinas
Que nas catedrais em que se enfraquecem os sonhos
Há fortalezas de homens e mulheres oásis.

Deixa que esta nuvem de açucenas
Conduza este corsário que voa
Como galo de rinha em arco e flecha
Porque na fragrância flagrante de teus olhos
Há uma sombra que assombra as minhas pedras.

Levanta
Sob os acordes das trombetas
E na bênção dos seios maternos
Rasga o véu que esconde os teus desejos
Porque as mãos que seguram o medo
Não exorcizarão jamais esta calma assassina.

Aldo Lins.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019




















IDENTIDADE

Aliado do céu por ser azul
Tento caminhar sóbrio
Mesmo sentindo o chacal
Nos meus sensíveis calcanhares.

Tenho cinquenta sonhos publicados
Outros tantos arquivados
Sou um cavaleiro de aquário
Pertenço a uma estrela imaginária.

Entretanto, as minhas asas rastreadas
Não alcançaram o cume das montanhas
O cheiro da dor cinza pela estrada
Revela a tristeza de minha alma.

Mas sobre tudo ou sobre nada
Há uma calçada onde passeia o rouxinol
E uma varanda abandonada
Onde moro eu e o sabiá.

Aldo Lins

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019














SONETO DO DESENCONTRO

Sempre haverá a noite pelo espaço
por mais astros que brilhem nos teus olhos.
Quando uma música tristíssima soando
convencer-te que a tua é transitória.

A nostalgia habitará por certo,
descida não sei donde, o teu solar.
E entre nuvens pretéritas sonhando
buscarás impossíveis reencontros

que nunca se darão, porquanto mortos
os tempos em que o ideal, qual lua plena,
boiava imortalmente sobre os céus.

Algo mudou decerto o rumo e a sorte
das setas desfechadas contra a noite
e cravadas no espaço sem memória.

Ângelo Monteiro

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

















DOS LIMITES DO CORPO E DO POEMA

Não, não quero a euforia fácil dos bêbados.
A bondade fácil dos bêbados.
A ternura pegajosa dos bêbados.
Não quero o desfibrado entusiasmo
dos que são cativos das acrobacias dos tempos
antes de serem os tempos conjugados.
Filhos do puro jogo, porém imunes
ao fogo da Palavra. Por isso
quero todos os tempos do corpo
concentrados. Porque só aquilo
que se concentra sobre si mesmo é eterno.
Quero o mar concentrado e não disperso.
Quero enfim, o infinito. E nada impede
ser infinita uma coisa por ter margens.
Nós nascemos também tendo um corpo na vida.
Assim um poema. Assim tudo: em forma e substância,
a moldura do tempo faz eterno.
Quero o poema de um amor difícil:
como o sopro de um deus nascido em nós.
Que nenhuma palavra lhe anteceda.
Porque nada acontece à própria origem.

Ângelo Monteiro

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

















Cantigas de Fingimento VIII

Escrevo como quem nada
sabe dizer, mas dizendo
a mão sinto arrebatada
para o que eu não compreendo:

Mesmo sem saber a estrada
não me entrego nem me rendo. 

Quero dormir. Só o sono
me interessa e nada mais.
Em vão procuro abandono
para o meu corpo sem paz: 

Mas meu invisível dono
minha vontade não faz.

Ângelo Monteiro

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

















A VISÃO DE UM ANJO DE COSTAS

Não é por mero protesto
nossos cabelos nos ombros:
somos bem pouco terrestres,
somos mais venusianos. 

Escondem asas secretas
estes cabelos que usamos:
como todos os estetas
as coisas prefiguramos.

De modo que as imagens
das vossas alegorias
são bem pouco, comparadas
com a nossa telepatia 

e o nosso poder de usar
só as palavras supremas:
não somente as necessárias,
mas aquelas que o homem teme. 

O resto comunicamos
por meio dos nossos olhos:
em nós, poços de energia,
em vós, poças de silêncio. 

Nem contempleis nossos ombros:
cabelos vertiginosos
e tênues, como os abismos,
perturbarão vosso sono.

Ângelo Monteiro

domingo, 15 de dezembro de 2019

Discurso sobre o vazio - Ângelo Monteiro

Dura necessidade
de invocar os objetos,
como se dependêssemos
deles para existir. 

Como se o seu vazio
fosse menor que o nosso:
nós que usamos palavras
por medo do silêncio.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Meditação Sobre as Águas - Ângelo Monteiro






















Nunca nos repetimos: ainda ante velhos fantasmas.
No búzio em que o escuto o mar não se perdeu.
No fluir dessas águas persigo a luz da esfera.
Nas margens desse mar que pátria renasceu? 

Se a doutrina do mar não for a verdadeira,
as outras não o são. (Escuto o mar, que é meu.)
Tanta nave sobre essa antiga casa:
casa tão ampla ao nosso parco ser.
E onde a chave perdida
sobre as ondas que vêm e as ondas que vão?