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domingo, 31 de julho de 2016
























Soneto só pra mim

Vou assim pelas ruas: meus cabelos
libertos, esvoaçando a quatro ventos.
Não os posso prender e nem quero prendê-los
-- que eles são braços de meus pensamentos!
Vou assim pelas ruas da cidade:
-- gravata frouxa, alma vagando ao léu...
Tenho a cabeça erguida por vaidade:
esta vaidade de fitar o céu.
E vou sorrindo de meus próprios sofrimentos!
(alma e cabelos esvoaçando aos ventos)
Eu sou o mais feliz dos infelizes!
É que, em toda a minha vida,
sempre fui árvore florida,
que ri do sofrimento das raízes...

Ferreira Gullar

sábado, 30 de julho de 2016

















FAGULHA

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.


Ana Cristina César

Fonte: Se não canto, pelo menos grito

sexta-feira, 29 de julho de 2016


















AQUI MORAVA UM REI

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

Ariano Suassuna

quinta-feira, 28 de julho de 2016

















ESTRANHEZA

Sempre esteve ali e não nos demos conta
Talvez do céu escuro para a hora
Talvez das areias brancas
De onde vem a estranheza da montanha
Quando paramos para observar a cordilheira?
Se as ondas se repetem tão certas
E o globo continua circular
Vem das sombras
Sempre esteve ali
Oculta nas sombras
Pelas sombras revelada
Juçana

Fonte: https://sopoesia.wordpress.com/

terça-feira, 5 de julho de 2016

















POEMA PARA O SÉCULO DA MORTE

Dois homens, em aparente harmonia,
caminham, lado a lado,
em silêncio

Há um deserto no futuro
e, no presente,
as guerras se sucedem umas às outras;
no passado, ficaram as coisas do passado,
ficaram a infância, a juventude, os livros de Lima Barreto,
os abraços de Laura, os sonhos, a sabedoria dos antigos
e a música, a mais completa das artes,
Beethoven, Brahms, Mahler, Villa-Lobos...

A solidão, agora, é mais insidiosa.

Há séculos, as mentiras impõem o medo,
sugam os cérebros,
sequestram as almas, assassinam os corpos
e multidões voltam para casa com as mãos vazias.

De repente, um apunhala o outro,
pelas costas.

RAMOS SOBRINHO
Junho de 2016 - Pernambuco, Brasil

segunda-feira, 4 de julho de 2016














Oração do Milho

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das
 lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudares, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem
lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas, 
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão
do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a
                               vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja
                                               dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que
amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizeste necessário e humilde.
Sou o milho.


Cora Coralina

domingo, 3 de julho de 2016




















Amorenado Passo

Por onde andará o amorenado?
Pressuponho confiante
perambula divagando
devaneia com-passos

Longínquo jornadeia
caçando pensamento
que decifre a poética
dos mistérios imortais

Amorenado
enquanto passa pensa
Ao passo que
penso
por onde andará
seu passo

Jordanna Malena


Inspiração recebida em 27/06/2016, em homenagem ao filósofo carioca Filipe Ribeiro que, como Nietzsche, revela que o andar favorece o seu pensar.