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terça-feira, 19 de maio de 2020

















Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos...

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

segunda-feira, 18 de maio de 2020















Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.

Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
e os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o barro do serviço de café da beladona.

O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.

Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre e sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador

do amor que é nosso.


2.
O marquês de Sade retornou ao interior do vulcão
em erupção
de onde tinha vindo
com as suas belas mãos de novo franjadas
os seus olhos de rapariga
e à superfície esta satisfação dum salve-se quem puder
que não foi senão dele
mas do salão fosforescente das luzes viscerais
não cessou de lançar as ordens misteriosas
abrindo uma brecha na noite moral

É por esta brecha que eu vejo
as grandes sombras estralejantes a velha crosta escavada
desfazerem-se
para me deixarem amar-te
como o primeiro homem amou a primeira mulher
em liberdade inteira
essa liberdade
pela qual o fogo se fez homem
pela qual o divino marquês desafiou os séculos as suas
grandes árvores distraídas
os acrobatas sinistros
presos ao fio da Virgem do desejo.