Translate

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Fotografia Aérea - Ferreira Gullar






Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados lá embaixo sob
as folhas
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente
do capim

junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro na usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou

II


eu devo ter ouvido no meu quarto
um barulho cortar outros barulhos
no alarido da época
rolando
por cima do telhado
eu
devo ter ouvido
(sem ouvir)
o ronco do motor enquanto lia
e ouvia
a conversa da família na varanda
dentro daquela tarde
que era clara
e para sempre perdida
que era clara
e para sempre
em meu corpo
a clamar
(entre zunidos
de serras entre gritos
na rua
entre latidos
de cães
no balcão da quitanda
no açúcar já-noite das laranjas
no sol fechado
e podre
àquela hora
dos legumes que ficaram sem vender
no sistema de cheiros e negócios
do nosso Mercado Velho
- o ronco do avião)
III
eu devo ter ouvido
seu barulho atolou-se no tijuco
da Camboa na febre
do Alagado resvalou
nas platibandas sujas
nas paredes de louça
penetrou nos quartos entre redes
fedendo a gente
entre retratos
nos espelhos
onde a tarde dançava iluminada
Seu barulho
era também a tarde (um avião) que passava
ali
como eu
passava à margem do Bacanga
em São Luís do Maranhão
no norte
do Brasil
sob as nuvens
IV
eu devo ter ouvido
ou mesmo visto
o avião como um pássaro
branco
romper o céu
veloz voando sobre as cores da ilha
num relance passar
no ângulo da janela
como um fato qualquer
eu devo ter ouvido esse avião
que às três e dez de uma tarde
há trinta anos
fotografou nossa cidade
V

meu rosto agora
sobrevoa
sem barulho
essa fotografia aérea
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poeminha Sentimental - Mário Quintana

























O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...

De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Aves de Rapina - Joaquim Cardozo




















Há muitos anos que os caminhos se arrastavam
Subindo para as montanhas.

Percorriam as florestas perseguindo a distância,
Longos e lentos deslizavam nas planícies.

Passaram chuvas, passaram ventos,
Passaram sombras aladas…

Um dia os aviões surgiram e libertaram a distância,

Os aviões desceram e levaram os caminhos.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

























Quero ser o teu amor amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amor amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias...


Fernando Pessoa

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A Linguagem da Arte - Eduardo Galeano



















               



                           Pintura: Van Gogh



Chinolope vendia jornais e engraxava sapatos
em Havana. Para deixar de ser pobre,
foi-se embora para Nova York.

Lá, alguém deu de presente a ele uma máquina
de fotografia. Chinolope nunca tinha segurado uma
câmera nas mãos, mas disseram a ele que era fácil:
- Você olha por aqui e aperta ali.
E ele começou a andar pelas ruas. Tinha andado
pouco quando escutou tiros e se meteu num
barbeiro e levantou a câmera e olhou
por aqui e apertou ali.

Na barbearia tinham baleado o gângster Joe Anas-
tasia, que estava fazendo a barba, e aquela
foi a primeira foto profissional de Chinolope.
Pagaram uma fortuna por ela.
A foto era uma façanha.
Chinolope tinha conseguido fotografar a morte.

A morte estava ali: 
não no morto, nem no matador. 
A morte estava na cara do barbeiro
que a viu.

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector

























Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

O Açúcar - Ferreira Gular



















O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Dançarina Espanhola - Rainer Marie Rilke


























Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.


(Tradução: Augusto de Campos)

Dos Limites do Corpo e do Poema - Ângelo Monteiro



















Não, não quero a euforia fácil dos bêbados.
A bondade fácil dos bêbados.
A ternura pegajosa dos bêbados.
Não quero o desfibrado entusiasmo
dos que são cativos das acrobacias dos tempos
antes de serem os tempos conjugados.
Filhos do puro jogo, porém imunes
ao fogo da Palavra. Por isso
quero todos os tempos do corpo
concentrados. Porque só aquilo
que se concentra sobre si mesmo é eterno.
Quero o mar concentrado e não disperso.
Quero enfim, o infinito. E nada impede
ser infinita uma coisa por ter margens.
Nós nascemos também tendo um corpo na vida.
Assim um poema. Assim tudo: em forma e substância,
a moldura do tempo faz eterno.
Quero o poema de um amor difícil:
como o sopro de um deus nascido em nós.
Que nenhuma palavra lhe anteceda.
Porque nada acontece à própria origem.

Soneto do Desencontro - Ângelo Monteiro















Sempre haverá a noite pelo espaço
por mais astros que brilhem nos teus olhos.
Quando uma música tristíssima soando
convencer-te que a tua é transitória.

A nostalgia habitará por certo,
descida não sei donde, o teu solar.
E entre nuvens pretéritas sonhando
buscarás impossíveis reencontros

que nunca se darão, porquanto mortos
os tempos em que o ideal, qual lua plena,
boiava imortalmente sobre os céus.

Algo mudou decerto o rumo e a sorte
das setas desfechadas contra a noite
e cravadas no espaço sem memória.

Os Indiferentes - Antônio Gramsci
























Odeio os indiferentes.
Acredito que viver
significa tomar partido.

Indiferença é apatia,
parasitismo, covardia.
Não é vida.

Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,
também, porque me provocam
tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes.

Vivo, sou militante.
Por isso, detesto
quem não toma partido.

Odeio os indiferentes.



Fonte: Quinzena, nº 236. São Paulo, CPV, 31.08.96, p.32





















Sou


Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.



Jorge Luís Borges, 
in "A Rosa Profunda"



domingo, 26 de janeiro de 2014

Vocação de Ícaro - Luciana Cavalcanti





















Este caminhar sem passos,

tão longe,

muito além, me levará...

Certeza de poder chegar

e o aprendizado

cotidiano das rotas...

Com curiosidade e precisão

avançar na invenção 

de caminhos novos...

Este caminhar sem passos

e o exílio das alegrias mais simples

dizem algo sobre a Liberdade:

olhar, no pés, pulsar o desejo,

saber que passos traduzem sonhos

e, então, inventar asas firmes...

já que tanto e sempre arde o sol!




Recife, Várzea do Capibaribe, 13 de Março de 2010.

Soneto da Fidelidade - Vinícius de Moraes

























De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Poema dos Manguezais - Ramos Sobrinho

























Garças sem fronteiras
visitam o Recife.

Dão-nos a impressão
de representantes
da Unesco,
averiguando,
entre nós,
o desleixo planetário.

Ficam semanas a fio
contemplando
a decadência
dos prédios abandonados,
refletindo
sobre a vaidade dos homens
e
a futilidade perfumada.

Ficam semanas a fio
sobre as folhagens
dos verdes manguezais,
aspiram os odores dos rios,
o calor,
a umidade relativa do ar
da minha infância,
sem nada a reclamar.

Apenas constatam,
vestidas de branco,
sob um céu serenamente
azul,
os sons dos maracatus
de Pernambuco,
e, de quando em quando,
bicam algum alimento
extra,
nas turvas horas das águas.


Olinda, 2013.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Do que nada se sabe - Jorge Luís Borges




A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstrato xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

  
In "A Rosa Profunda"

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Dá-me a tua mão - Clarice Lispector




Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Discurso - Cecília Meireles




E aqui estou, cantando.


Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.


Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.


Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, 
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.


Pois aqui estou, cantando.


Se eu nem sei onde estou, 
como posso esperar que algum ouvido me escute?


Ah! Se eu nem sei quem sou, 
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A oração de um desocupado - Juan Gelman


















Pai,
desce dos céus, esqueci
as orações que me ensinou minha avó,
pobrezinha, ela agora repousa,
não tem mais que lavar, limpar, não tem mais que preocupar-se,
andando o dia todo atrás de roupa,
Não tem mais que velar de noite,
penosamente,
rezar, pedir -te coisas, resmugando docemente
Desce dos céus, se estás, desce então
pois morro de fome nesta esquina,
não sei para que serve haver nascido
olho as mãos inchadas,
não tem trabalho, não tem,
desce um pouco, contempla isto que sou, este sapato roto
essa angústia, este estômago vazio,
esta cidade sem pão para meus dentes,
a febre, cavando-me a carne
este dormir assim,
sob a chuva, castigado pelo frio, perseguido.
Te digo que não entendo, Pai, desce!
Toca-me a alma, olha-me o coração,
eu não roubei, nem assassinei, fui criança
e em troca me golpeiam e golpeiam,
te digo que não entendo, Pai, desce,
se estás, pois busco
resignação em mim e não tenho
e vou esconder-me de raiva e afilar-me
para brigar e vou gritar
até estourar o pescoço de sangue,
porque não posso mais, tenho rins
eu sou um homem,
desce! Que fizeram de tua criatura, Pai?
Um animal furioso
que mastiga a pedra da rua?

(Transcrição e tradução de L.Boff)


Retrato - Cecília Meireles




Eu não tinha este rosto hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem lábio amargo
Eu não tinha estas mãos sem forças,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

domingo, 5 de janeiro de 2014

O Suicída - Jorge Luís Borges

























Não restará na noite uma só estrela.
Não restará a noite.
Morrerei e comigo irá a soma
Do intolerável universo.
Apagarei medalhas e pirâmides,
Os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei da história pó, do pó o pó.
Estou a olhar o último poente.
Oiço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A Solidão e sua Porta - Carlos Pena Filho

























A Francisco Brennand

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.