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sábado, 29 de novembro de 2014


















BLACK FRIDAY
Compra-se
adaptador ao presente
novo ou usado
nacional, importado
com tecnologia que repare
o impulso
pelas coisas ausentes
Compra-se
aparador de bigode
que afaste da narina
o cheiro de resina
dos amores inconfessados.
Auto-falante
que suplante
a falta de palavra
diante da liberdade.
Compra-se ainda
um abafador
dos mil beijos que estalam
na Rua Augusta
hoje
que estou só.
Troca-se
irremediavelmente
um ruído interno
de 200 decibéis
por externos
ternos, tatuagens, conversas fáceis
Vende-se
Minha vida
por um anúncio de publicidade

André Zahar
São Paulo, 28/11/2014

Songs from the wood - Jethro Tull

Adriana Calcanhotto

Catedral - Zélia Duncan

sexta-feira, 28 de novembro de 2014




























XXIII
Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...
Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe só num olhar...
- Mario Quintana,
in: A Rua dos Cataventos, 1940.

San Francisco - Scott Mckenzie

Bee Gees

















"Quando estamos nos degraus mais baixos
da escada do pesar , nós choramos .
Quando chegamos à metade dela ,nós emudecemos .
Mas quando alcançamos o topo da escada
do pesar ,nós convertemos a tristeza em canto ."
Poema hebraico

quinta-feira, 27 de novembro de 2014





















O NATAL QUE PRECISAMOS...

O príncipe da paz nasceu um dia entre nós,
rodeado de animais, num estábulo,
presenteado por reis magos do oriente,
que já sabiam que viria esse dia,
em que a humanidade receberia
um homem impregnado do amor,
que desceria de estrela de quinta grandeza, sem reclamar.

Foi recebido nos braços de um pai amável,
que enfrentou a travessia difícil
para salvar das garras do rei tirano
aquele que traria ao mundo a boa-nova.

Foi concebido no ventre de uma mulher
escolhida entre a multidão para educar o messias!
Missão grandiosa e perigosa que levaria
a uma jornada de peregrinação e pregação.

Palavras que soavam novas,
mas tão necessárias,
que a todos os quadrantes do planeta retumbava,
como o canto da paz e do consolo,
como até hoje.

No recanto das horas,
nada se perdeu,
tudo ainda vive como a dois mil anos...

E ele ainda fala porque ainda há quem o escute,
quem ainda precise entender o que quis dizer a sua fala em parábolas,
linguagem indireta da verdade,
mensagem de amor transcendental,
amor incondicional,
graça divina sobre nós. 

O QUE DIRIA O PRÍNCIPE DA PAZ, JESUS DE NAZARÉ, AO VOLTAR E ENCONTRAR O PLANETA QUE ALERTOU?
QUE DE NADA ADIANTOU O QUE DEIXOU?
QUE AINDA OS MESMOS HIPÓCRITAS FAZEM DO TEMPLO VITRINE DE EGOS?
QUE A MISERICÓRDIA NÃO AGUENTA MAIS ESPERAR?
QUE A PROVIDÊNCIA NÃO TEM MAIS O QUE FAZER?
QUE A INSENSATEZ TEM PRAZO PARA TERMINAR?
QUE OS JUSTOS SERÃO TIRADOS DAQUI?
OU QUE FICARÃO APENAS OS ÍMPIOS?
O QUE ELE DIRÁ QUANDO VIR,
QUE O LUGAR PRINCIPAL DO LAR NÃO É A RAZÃO,
MAS A TELEVISÃO COM A VINGANÇA EM QUESTÃO?
QUE A COMIDA DÁ INDIGESTÃO COM TANTA CONFUSÃO À MESA?
OU QUE O PÃO NA BOCA NÃO CURA A FOME,
MAS INTOXICA COM O FERMENTO DA COBIÇA?
QUE A AMBIÇÃO ESCONDIDA EM APELOS UNIVERSAIS DE PROPAGANDAS,
APRENDIDAS NAS UNIVERSIDADES DO HOMEM MAL,
DO HOMEM PERDIDO,
DO HOMEM QUE ENCABEÇA LEGIÕES DE ZUMBIS...
SERÁ QUE É LOUCURA? ESSE CENÁRIO DE HERODES E PILATOS
QUE ORA REAPARECEM COMO ANTIGOS DETENTORES
DE UM MUNDO QUE RUIU, DE PEDRA E CAL
UM MUNDO QUE APRENDEU A BUSCAR FELICIDADE NO LIXO
E A JOGAR FORA A PAZ ESSENCIAL!

Tereza Soares - Nov. 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

















SUBSCRITO
escrever é como uma febre. forte, intrigante, com ranhuras. saber ter o faro é rasgar-se sobre o vazio sem hora. é como reescrever-se. fundar uma nova bússola. impregnada de insônia e fundos olhos. rasgar palavras na noite, soletrar-se. pandemônio surto sem luz venda destrato. esburacar como uma serpente que enrodilha a presa e estrangula. voracidade dentro da letra. loucas letras luxações de línguas. escrever querendo ou não. tem que parir. como torcer a rede onde a palavra se esconde. um vigilante acordado de larvas verbais. tal mandante que autoriza dissecação de órgãos, violenta excomungação barbárie intrépida estética sem métrica. embiocar-se como uma salamandra cínico almanaque rodopia entre mente, cérebro. mão que explode no vazio do visor verbal. paragrafoseando uma matilha descontextualizada. e rir penar de pensar parar silêncio. é no vazio onde o vácuo do verbo voa. sugando expiação tentativa doida. esticar-se como um escuro que visita um vulto verbal. profundo fundo do poço palavra. uma longuíssima luta letral. sem trégua. sem régua. névoa verboa. em um salto, caldo em crise canto. as palavras nascem quando você adormece. entre a mão e a mente ardente. fundo fogo fura cata miolo. caça cabeça traça. vil ventre verbo. sujeito frio, sem teto.
Carlos Gurgel



























CANTO NEGRO
Sou negro.
A cor da noite adensa a minha pele
e estrela a minha alma.
Sou negro.
Absorvo toda a luz.
Sou amigo do Sol e da Lua.
São meus irmãos todos os seres da Terra.
Sou negro.
Meu sangue é ardente.
Meu pensamento é ardente.
O mundo é para mim o Verbo emocionado.
Sou negro.
E, como a natureza ama o contraste,
amo as mulheres de pele branca e cabelo macio.
Mas, como o coração é um sol
consumindo-se em fogo,
amo as mulheres de pele noturna e sexo forte.
E com todas vou forjando o dia, a tarde e a noite.
Sou negro.
Com meu suor e meu sangue,
meu desespero e minha revolta,
minha dedicação e minha brandura,
minha força e meu sonho,
modelo em bronze e nuvem
o quinhão de humanidade que me coube.
Sou negro.
Meu coração não é incolor,
minha alma não é pálida.
Caminho com meus irmãos de todos os tons.
Juntos, numa ciranda ainda feroz de semelhantes e contrários
mas que do alto Deus vê de mãos entrelaçadas,
vamos fazendo de matéria nobre
—este barro pobre,
esta liga impura—
a luz comum futura.
Sou negro.
E sou branco e amarelo e vermelho e moreno.
E verde.
E azul.
Sou todo o espectro da alma.
Sou homem.
Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)

Desengano - Lula Côrtes e Tito Lívio

terça-feira, 25 de novembro de 2014






















MONÓLOGO
Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.
Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!
É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,
qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.
Dante Milano,
In melhores Poemas






















VELHA CASA
Fomos ver a casa anunciada.
E nos demos conta
de que as casas, como as pessoas,
morrem.
Logo à entrada,
a cerâmica, arcaica,
mostrava como uns poucos anos
podem acumular o pó dos séculos.
Dentro, tapetes bordados a mão,
tipo casa-grande,
talvez portugueses,
bronzes antigos,
faianças,
vasos de plantas,
peças avulsas
de mobiliário nobre.
Tudo com a pátina,
a ronha,
a ferrugem,
o fungo,
o cuspo,
o vômito do tempo.
E, contudo,
podia-se sentir
—ainda! ainda!—
o amor que presidira
à feitura, à escolha,
à disposição
de tudo aquilo
em composições plásticas
de que emanava calor.
E no conjunto se multiplicava
da soma das peças o valor,
mercê da mais-valia
da poesia
e do amor.
Na parede da sala um retrato
lindo de mulher,
no escritório fotografias
de juventude,
contrastantes
com o bafio e o bolor.
Na casa abandonada
fizeram ninho vespas,
aranhas, mofo, enfim
a fauniflora do esquecimento,
solfejando morte, inferno e dor.
Ah! melancolia
de ver que nada somos,
nada valemos,
nada! Mas a lição
de que,
de tudo,
sobrevive,
só,
o que a alma tocou.

Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)

sábado, 22 de novembro de 2014






















PARA UMAS NOITES QUE ANDAM FAZENDO
deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem
quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém
deixe ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém
Paulo Leminski
In O Ex-estranho

sexta-feira, 21 de novembro de 2014




















Lua Adversa


Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles, in 'Vaga Música'

Soja

Sting - Fields of Gold

Sting

quinta-feira, 20 de novembro de 2014





















"Venho de uma província obscura, de um país separado de
todos os outros pela cortante geografia. Fui o mais
abandonado dos poetas e a minha poesia foi regional,
dolorosa e chuvosa. Mas sempre tive confiança no homem.
Jamais perdi a esperança. Talvez por isso chegasse até
aqui com a minha poesia e também com a minha bandeira.
Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade,
aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi
expresso nesta frase de Rimbaud: só com uma ardente
paciência conquistaremos a esplêndida cidade que
dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.
Assim, a poesia não terá cantado em vão.”
Pablo Neruda
(excerto do discurso ao receber
o Prémio Nobel de Literatura, 1971)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Orishas - A lo cubano (Full Album)

Manu Chao - Clandestino

Andreas Vollenweider - Caverna Mágica

Kitaro











Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.

Edgar Allan Poe
In Obra Completa.




























Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados
num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a
terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para
que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas
tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam
o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os
pássaros - Em vão... porque até na cidade, a primavera
é primavera.
LeonTolstói,
em "Ressurreição"

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Phil Collins

Sade - The Best of



























EXÉQUIAS
Eu não sabia
que amar doía.
Até que senti
aquele infame
buraco a cavar-se
em minhas entranhas.
Então,
maldisse o amor
e joguei por cima dele
a terra
que o sufocou.
A raiz enterrada
cova profunda...
Fecunda terra
que o acolheu!
Ele, o amor,
era único
e totalmente meu.
Quem me mandou plantar?
Assim,
planta rara que é
dentro de mim
está sempre a brotar!
Lígia Beltrão
Foto: Google

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Pink Floyd - Dark Side of the Moon




O LADO FATAL

I

Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

II

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.

III

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.

IV

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.

Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais.

V

Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.

Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.

Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).

Sobrevivo, mas pela insensatez.

VI

Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.

VII

Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.

Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.

Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.

VIII

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.

XIX

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange.

Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca.

X

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos.

"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.

Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.

XI

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.)

XII

Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)

XIII

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança

XIV

Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz.

Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.

Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.

Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

XV

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

XVI

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.

XVII

Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:

quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.

Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.


- Lya Luft,
em “O lado fatal”. 1988.

(O poema foi escrito para Hélio Pellegrino
após a sua morte)

(1924-1988).