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terça-feira, 29 de março de 2016

Discurso de Charlie Chaplin em "O Grande Ditador"

Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar - se possível - judeus, o gentio... negros... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma do homem ... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. A aviação e o rádio aproximaram-se muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem os homens, a liberdade nunca perecerá. Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas ... que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos. Soldados! Não batalheis pela escravidão! lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Estás em vós! Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos. Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos. Charlie Chaplin Fico muito agradecido ao meu amigo Itárcio Ferreira por ter resgatado esse discurso de Charles Chaplin, "O GRANDE DITADOR" foi um dos melhores filmes que eu já vi na minha vida. Visitem o blog:Se não canto, pelo menos grito - blogdoitarcio2.blogspot.com.br


1
Mobiliário Íntimo

As paredes do sótão são feridas
e a noite em flor se agacha entre os seus muro:
é no sótão que o homem empilha a vida
e empilha o tempo que ficou maduro.

No seu interior, por entre pilhas
de tempo e mundo, a saudade cresce
ressuscitando no homem maravilhas
que exceto o homem, ninguém mais conhece.

Às vezes o sótão geme e chora, opresso,
hora em que o homem, voltando ao início,
sente, folheando o tempo nele impresso,
que o sótão respira feito um bicho.

O homem habita o sótão que o habita
e no chão deixa a pátina dos seus passos,
sem saber explicar, quando o visita,
porque no sótão o tempo é sempre intacto.

Nos dias em que o sótão cheira a azedo
e a memória do homem, inchando dói,
o homem, aninhado nos seus feudos,
quer falar mas não acha a sua voz.

O sótão, como o homem, é uma imagem
feita de imagens, no tempo desdobrada:
o homem sabe onde nasce a sua imagem,
porém não sabe em que dia ela se apaga.

Quando, para expurgar a sua angústia,
o homem abre o silêncio e o sótão se abre,
o tempo na memória é luz e música
e, no silêncio, o homem inteiro arde.

A paz desse momento é alada e exata
e resplendendo, sem nódoa e sem ferrugem,
a ternura do homem se desata
e o sótão todo cheira a flor e nuvem.

Jaci Bezerra

segunda-feira, 28 de março de 2016























CANÇÃO

Vou plantar na varanda a minha mágoa,
e espero, assim, que a vida a mim esqueça.

Fluídico e sereno como as águas
deixem, vocês, que eu me desapareça.

Vou partir depois disso, prontos tenho
o passaporte e a blusa de emigrante.

Deixem vocês, eu parto como venho
para ser outra vez o que fui antes,

As lágrimas ardendo são estrelas
cintilando no fundo de outro poço.

Vocês não se debrucem para vê-las
que, nelas, acharão só meus destroços

(a canção que inventei de ouvido, inteira,
e as rosas florescendo nos meus ossos).

Não procurem saber dos meus intentos,
peço como um favor, ninguém me ouça,

pois rosário já vem tangendo os ventos
e apaziguando a minha carne moça,

vem molhada de luz, vem sem lamentos,
trazendo um lírio em suas mãos de louça.

Já é chegada a hora da partida,
No meu bolso soluça o coração,

por isso, não liguem muito à vida
que para olhar e ver, trago na mão.

Nem olhem, se ainda me veem, para a ferida
que expõe, aberta, a minha solidão.

Parto rendido e entregue aos meus afetos,
e amigos que não tenho, não terei.

Matei as sempre-vivas do deserto
recusando as canções que não criei.

E descobri, sentindo o amor tão perto,
que nada sou do sonho que inventei.

Jaci Bezerra

domingo, 27 de março de 2016















Certa vez, Fernando Pessoa
perguntou ao Sá Carneiro:
“De que cor será o sentir?”
E eu respondi assim:

De que cor ficou o Sá Carneiro
com tamanha interrogação?
Decerto que o poeta traz no bolso
todas as cores.

Mas definir a cor do sentir
deve ser tão duro
quanto o próprio silêncio
que antecedeu a resposta
(se houve resposta)
imagino a pessoa do Sá
na pessoa do Pessoa.

De que cor o Pessoa pensou
que o Sá iria pensar?
Pergunto porque já estou pálido
de virar noites à dentro
espantando moscas e mosquitos.

Ontem por sinal
             nadei

                              nadei

                                              e nada.

“Vou terminar morrendo afogado dentro dos fatos”

Alguém dos Aflitos saberia?
Já disseram por aí
que na lata do poeta
“Tudo nada cabe”.
E a mim só me cabe
chutar a lata.

Pois é dentro da lata que encontramos
tudo aquilo que não é lata.

Quanto à cor do sentir
cada um que sinta por si.

Miró
em “Ilusão de Ética”

sábado, 26 de março de 2016























ESTRANHO

Nunca saberão quem sou,
de onde vim,
aonde vou,
muito embora eu tenha as mãos eternamente abertas
e a alma diariamente entregue ao sol.

Sérgio Leandro

















Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
Se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
Estou bem perto de ti.

Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
por mero acaso aliás;
bem pode ser que um grito da tua ou minha boca —
e eis que se desfaz
sem só rumor ou ruído.

       Com imagens tuas o muro foi construído.

Diante de ti tuas imagens são como nomes.
E quando um dia dentro de mim esteja acesa
a luz com que te conhece minha profundeza,
será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.

E os meus sentidos, que um torpor célere consome,
estão sem pátria, exilados da tua grandeza.

Rainer Maria Rilke















VERSO 6

Eu não posso colecionar selos
Eu não posso colecionar fotos de mulheres
Eu não posso colecionar namoros
nem sabedoria
eu já não posso nada mais
          eu já não posso nada mais
Porque não apago a luz
          e não vou pra cama
Eu quero provar
          estar nu
          pelado quem sabe sim púrpura gelada
                                                e palidez
Não é assim o próprio princípio principiante
Eu não quero saber nada
eu não quero perguntar
          porque
          eu não me tornei um colecionador de selos
Eu começarei por dar meu fracasso
Eu começarei por dar minha falência
Eu me darei um pobre despedaço de terra
                              uma terra pisoteada
                              uma terra de urzes
                              uma cidade ocupada
Eu quero estar nu
     e começar

Paul Van Ostaijen
Trad.: Philippe Humblé e Walter Costa






















ANTES DO COMEÇO

Ruídos confusos, claridade incerta.
Outro dia começa.
Um quarto em penumbra
e dois corpos estendidos.
Em minha fronte me perco
numa planície vazia.
E as horas afiam suas navalhas.
Mas a meu lado tu respiras;
íntima e longínqua
fluis e não te moves.
Inacessível se te penso,
com os olhos te apalpo,
te vejo com as mãos.
Os sonhos nos separam
e o sangue nos reúne:
Somos um rio que pulsa.
Sob tuas pálpebras amadurece
a semente do sol.
                            O mundo
No entanto, não é real,
                          o tempo duvida:
Só uma coisa é certa,
o calor da tua pele.
Em tua respiração escuto
as marés do ser,
a sílaba esquecida do Começo.

Octavio Paz
Trad.: Antônio Moura

sexta-feira, 25 de março de 2016
















COLEGIAIS

São todos eles imortais
e onde estiverem lhes transborda
voraz a vida, com seus volts,
sua guitarra de mil cordas;

tanta energia é uma cegueira,
manhã sem fim, a vida inteira,

até que a tarde se anuncia
ao primeiro tremor das mãos,
até que o corpo não sacia

mais o outro corpo e a noite eleva
sua alta parede de treva.

Alberto da Cunha Melo
De Meditação sob os Lajedos (2002)











ORGASMO

Todo corpo, em seu esplendor,
divide em duas esta vida,
mas este êxtase existe mesmo
para ocultar uma descida

da carne, no único momento
em que do cosmo é instrumento;

truque do eterno é todo amor:
toca por baixo o fogo alto
que aquece o sonho ao sol se pôr,

porque logo devolve aos dois
o nada de antes e depois.

Alberto da Cunha Melo




















CANTO DOS EMIGRANTES

Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos             
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.

De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico, 
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.

Alberto da Cunha Melo














QUARTO DE PENSÃO, NA RUA NUNES MACHADO

Naquelas paredes, minhas palavras ficaram coladas.
Se você colocar seus ouvidos nelas,
Ainda escutará ecos dos passos na escada de madeira.
Ecos do deslizar de mãos nos corrimões,
Ecos dos chiados de ratos,
Do giz no quadro verde.

Duas ou três vezes, insone na noite,
Eu descia a escada e olhava a rua.
Tudo apagado.
Depois das aulas, a rua era esquisita, nua, intrigante.
Rua tão solitária quanto eu.
Eu ficava, então, a digerir sombras e a mim mesmo.

A frieza era de espantar na madrugada.

Os fantasmas, nessas horas, davam gargalhadas
Que me assustavam;
Mas, em algumas noites, ficavam calados,
Soturnos, como corujas,
Respeitando a minha solidão.

Joca de Oliveira
em "para além do peito TATUADO"

quinta-feira, 24 de março de 2016
















MONÓLOGO

Para onde vão minhas palavras,
se já não me escutas?
Para onde iriam, quando me escutavas?
E quando me escutastes? - Nunca.

Perdido, perdido. Ai, tudo foi perdido!
Eu e tu perdemos tudo.
Suplicávamos o infinito.
Só nos deram o mundo.

De um lado das águas, de um lado da morte,
tua sede brilhou nas águas escuras.
E hoje, que barca te socorre?
Que deus te abraça? Com que deus lutas?

Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,
com minhas perguntas.
Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.

Cecília Meireles
In: 'Vaga Música', 1942





















ANZÓIS DE OLHOS

cai
e não sei como fugir
dessa armadilha
anzóis de olhos
no meu coração
profundo mergulho de
mim na imensidão de ti
me procuro nos teus
sonhos e me encontro
sorrindo
como as plantas
no cair da tarde
chuva chuva chuva
Insistindo no calor das lembranças
eu sou um ser resumido
a tintas e papéis
segredo segredo segredos
abrindo túmulos na zona de luz
misteriosa magia das palavras
amor amor amor
tantas outras dançam no espaço
mas é que dentro do meu peito
mora uma mulher de olhos
claros de lua
desejos de quebrar tijolos
e desenhar uma nova estrada

Miró
em "Quem descobriu o azul anil"















SOB AS ASAS DA ÁGUIA

A África negra
Desfila com seus balaios
Em uma cidade qualquer
Desta América miserável.

Uma mulher sorri
Vendendo tapioca e negobom
No quintal das oficinas
As crianças perdem o frescor

A cidade semana acordada
Adormece aos domingos,
Na madrugada suja
Os solitários usam Ferrari
Os solidários, os pés no chão

Na outra margem da rua
Os anjos perseguem os bêbados
Com seus canivetes afiados
A linda cidade
Transforma-se num feroz animal

A pele escamada e cinza dos becos
Os vêem passar sombrios
Os luminosos perdem as cores

Das janelas dos sobrados
As mães com os olhos marejados
Sem favônios ou arpejos
Esperam os filhos,
Uma espera em vão.


Aldo Lins.

















PEGADAS NOTURNAS

Eu ando pelas ruas
Em busca de um contato
Mesmo que seja breve
Mesmo que seja leve
Mas que com ele eu possa voar.

Eu ando pelos bares
Como um Beduíno
Em busca de água no deserto
Talvez o incerto
Possa então me acompanhar.

Eu ando pelo quarto
Meditando por horas cruas
O rosto da pessoa nomeada
Fecho a porta, apago a luz
E continuo encompridando espirais.

Aldo Lins

















A ESTRADA NÃO TRILHADA

Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
Assim, por longo tempo eu ali me detive,
e um deles observei até um longe declive
no qual, dobrando, desaparecia...

Porém tomei o outro, igualmente viável,
e tendo mesmo um atrativo especial,
pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
os tivesse marcado por igual.

E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
de folhas que nenhum pisar enegrecera.
O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.


Robert Frost

quarta-feira, 23 de março de 2016


"Há no coração do homem um vazio do tamanho de Deus."

(Fiódor Dostoiévski)

terça-feira, 22 de março de 2016


As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim;
Renovam-se a cada manhã; grande é a tua fidelidade.
(Lam. de Jeremias 3:22-23)












O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

Sebastião Alba
















                                                      vemKacilda


Aqui são quatro e meia
e uma saudade medonha.
Esta minha ausência de letras
é porque estava viajando
e viajando.
Quando voltei
sua carta estava no chão da minha
saudade.
Voltei
e aqui vou neste corre-corre
de palavras soltas ao vento.
Keninho está em silêncio
mas fala alto com os olhos
tá mandando um sol de felicidade
ele não é amigo íntimo
das palavras
cê entende né?
Toda pessoa é uma
nave que voa
e voando vamos pousando
nossos pássaros na folha
branca do papel

Miró
em "Quem descobriu o azul anil"






















A CANÇÃO DE ÉRIKA

Estás além.
Mais alto.
Luz que amadurece os frutos.
Eu, sou o que se desfolha,
do lado em que te olho,
minha doce menina.

Náufrago de ti,
deliro ilhas, multidão.

Sei do teu sorriso,
Canção do vento.
E desses versos que vem de ti,
calmaria e tormento.

Me resta a cidade acesa,
os sonhos atravessados,
os dias explodidos.

Jorge Lopes.

quarta-feira, 16 de março de 2016















ESTÓRIA
               COMPACTA
                                 DA ORIGEM
                                                    DO MUNDO

Há milênios atrás
uma luz
não sei se vinda de
outra luz
fez-se luz
e vieram os homens
e logo ali ao lado
as palavras
dando nome às coisas

Miró
em "Quem descobriu o azul anil"

segunda-feira, 14 de março de 2016

















A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 9 de março de 2016
















Passeio no Parque
(Óleo sobre tela, de Seurat)

Neste parque imutável
até hoje passeiam
estes homens de escuro
e estas frágeis mulheres
Até hoje as flores, os cristais
e as toalhas
são sem mácula
nas salas de esperar
o amigo, o amado
ou a chuva passar. Nada
de apocalipse
a terrível Besta e poços
insondáveis. Nada
a relembrar o abismo
que somos.

Celina de Holanda















O CICLO

Na sala o espelho,
a rua na sala, a moça
o relógio ao contrário.

A moça decide o cabelo
à altura do amado,
que decide o seu sol
à altura da vida, de muros
tão altos.

Celina de Holanda













RETORNO

Este chão é pausa.
Deem-me a infância
para que eu retorne
reencontre meu chão,
seu verde, seus marcos,
seu barro plasmável.

Quero saber de novo
de terreiros limpos
com vassouras verdes

do tempo correndo
branco como um rio,
carregando as roupas
qual nuvens mais alvas.

Massapê das margens,
sapatos de lama,
toalhas de vento
e o regresso limpo,
lento como a tarde.

Celina de Holanda













AS VIAGENS

Viajo nos livros que faço,
mas sempre torno,
para escrevê-los
onde a vida
é uma menina pobre chorando
entre as moitas.
Trago-a de volta
ao seu colo, sua casa,
até que venha e me leve
o meu amado.

Celina de Holanda














COLCHA DE RETALHOS

No chão da casa depositei as malas
E me sobraram braços
(meu nome
perdido em sua voz, não me chamava)
era a noite onde as coisas terminam
a interminável.
Agora
Setecentos e vinte e seis dias depois,
Um ar de chuva atravessando o rio,
Sento na máquina e recomeço a vida,
Só retalhos.

Celina de Holanda