"Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma." - Cora Coralina
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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
AQUI ONDE SE ESPERA
Aqui onde se espera
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,
Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,
E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,
Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,
Gozando da ventura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura
De reinar, mas guardando
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...
Que mais quer quem descansa
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,
Que ter a negação
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?
Fernando Pessoa
PEDRA NEGRA SOBRE PEDRA BRANCA
Morrerei em Paris com aguaceiros
num dia de que já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris - daqui não saio -
numa quinta-feira, como hoje, de outono.
num dia de que já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris - daqui não saio -
numa quinta-feira, como hoje, de outono.
Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só.
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só.
Morreu César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte
com uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...
César Vallejo
OS ANÉIS FATIGADOS
Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.
Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na áfrica de uma agonia ardente,
suicida!
que acaba na áfrica de uma agonia ardente,
suicida!
Há ânsias de... não ter ânsias, Senhor,
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.
A primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.
Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!
César Vallejo
domingo, 28 de fevereiro de 2016
CLUBE DOS 27
O Clube dos 27 , também às vezes conhecido como o Para Sempre Clube 27 ou Clube 27 , é um grupo de músicos do Rock ou blues influentes que morreram aos 27 anos de idade, Os 27 anos são, no mínimo, míticos dentro do universo musical. Alguns dos grandes artistas que o mundo já conheceu coincidentemente vieram a falecer com esta idade. Além do talento inquestionável e da época da vida em que morreram, um outro fator é comum a estas estrelas: a personalidade polêmica e, num dos casos, a virgindade. Este é composto por Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal
O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS - UMA JORNADA PELA HISTÓRIA POLÍTICA DO SÉCULO XX
O título do livro faz referência ao trecho em que o personagem e narrador Iván -
Além de expor a complexidade humana dos personagens, o livro nos apresenta
Depois da revolução de 1917, após a eliminação da autocracia e do governo
provisório, a Rússia passou por um período de reorganização social e política, mas
com a morte de Lênin em 1924 o partido Comunista ficou dividido, Josef Stálin
tornou-se o novo secretário-geral, havia conseguido com habilidade e artimanha
que Trotsky fosse expulso do Partido, e governaria a União soviética por 30 anos.
O principal ponto divergente entre eles era sobre os rumos que a revolução deveria
tomar a partir de então. Enquanto Trotsky tinha pretensões de estendê-la por toda
a Europa e criticava a burocracia stalinista, Stálin achava que deveria permanecer
limitada ao bloco de países soviéticos. Trotsky passara então de grande condutor
da revolução de 17 a um contra-revolucionário traidor, chegando ao extremo de
ser considerado um aliado dos fascistas. Um inimigo útil para o jogo político de
Stálin, enquanto fosse de seu interesse. O próprio Trotsky já no exílio, reconhece
que havia subestimado a capacidade de Stalin, um militante sem muita cultura e
um tanto grosseiro, de manipular o Partido. Trotsky em seus pensamentos lembra
que devia ter desconfiado daqueles “olhos de réptil”, que tão logo assumiu o poder
passou a reprimir, perseguir e eliminar seus oponentes ou quem ele assim
considerasse, fossem antigos militantes, intelectuais, artistas, ou, trabalhadores,
aqueles mesmos em nome de quem os comunistas diziam ter feito a revolução.
A esquerda em um mundo então dividido entre o fascismo de Hitler e seus aliados
e a suposta salvação pelo comunismo stalinista, estava desorientada, e uma parte
dela acreditava que o regime de governo de Stálin poderia ser o melhor para todos.
Mas na verdade o mundo estava entre dois regimes totalitários protagonizados por
dois tiranos manipuladores, responsáveis pelos maiores crimes contra a
humanidade no século 20, com a única diferença que no caso de Hitler o genocídio
ocorreu durante a guerra e Stálin o praticou em tempos de paz. Para Trotsky o
comunismo começava a cavar sua própria cova.
Em paralelo à narrativa sobre a vida de Trotsky no exílio, surge o personagem de
PUBLICADO EM LITERATURA POR ELI BOSCATTO
um escritor desiludido que vive em Cuba, país que passa por dificuldades
econômicas com o fim da ajuda da União Soviética, e às voltas com seus próprios
dramas pessoais - em um de seus passeios pela praia, chama sua atenção um
homem misterioso que costuma passear com seus cachorros da raça borzói, uma
raça de galgos russos que Iván conhecia bem por trabalhar em uma clínica
veterinária. Acaba por isto travando uma certa amizade com esse homem.
Um ótimo romance histórico que mistura ficção e realidade, considerado o
melhor de 2013, ano de seu lançamento. O livro narra os acontecimentos que
culminaram com o assassinato de Leon Trotsky à mando de Josef Stálin,
secretário-geral do Comité Central do Partido Comunista da URSS, relatando ao
mesmo tempo a história de Trotsky e de seu assassino, o espanhol Ramón
Mercader, um militante recrutado pela NKVD da antiga União Soviética, mais
exatamente na tradução para o português, como Comissariado do Povo para
Assuntos Internos. É possível no romance observar, ou melhor, confirmar o
caráter personalista e tirano de Stálin.
Além de expor a complexidade humana dos personagens, o livro nos apresenta
um retrato de época que torna possível o entendimento acerca de eventos
políticos que marcaram o século, e como certos acontecimentos podem levar
à outros, trágicos ou não. Mas seu grande mérito é a reflexão sobre uma geração,
que sem se dar conta naquele momento da história, teve sua alma aniquilada e
sua individualidade massacrada por uma utopia desvirtuada pelos donos do poder.
Guerra Civil Espanhola
O cenário político mundial naqueles tempos era bastante conturbado, o mundo
havia recém saído da primeira grande guerra e a Alemanha sofrera uma derrota
humilhante que a deixara com a economia em frangalhos, o que estava facilitando
a ascensão de Adolf Hitler. Hitler então fingia ser aliado dos comunistas, e Trotsky
via com preocupação a subida dele ao poder, sabia no que isto iria dar. Seus
temores se confirmaram quando mais tarde os comunistas alemães passaram
também a ser alvos da perseguição nazista. As democracias ocidentais pareciam
desprezar a capacidade retórica de Hitler e suas doentias ambições expansionistas,
e foram omissas ao não intervirem na ocupação da Tchecoslováquia pelos nazistas.
Mais tarde, Stálin e Hitler assinariam um pacto de não agressão com pontos
obscuros, acordo que Hitler descumpriu ao invadir de surpresa a União Soviética
em 1941. A Espanha passava por uma violenta guerra civil, fortemente dividida
entre forças nacionalistas e fascistas, e a base do governo republicano espanhol
representado pelos sindicatos, partidos de esquerda e partidários da democracia.
Naquela época, após a vitória da revolução bolchevique na Rússia, havia no mundo
uma rigorosa divisão entre direita e esquerda, mas em nenhum outro lugar como
na Espanha a própria esquerda estava tão fragmentada.
provisório, a Rússia passou por um período de reorganização social e política, mas
com a morte de Lênin em 1924 o partido Comunista ficou dividido, Josef Stálin
tornou-se o novo secretário-geral, havia conseguido com habilidade e artimanha
que Trotsky fosse expulso do Partido, e governaria a União soviética por 30 anos.
O principal ponto divergente entre eles era sobre os rumos que a revolução deveria
tomar a partir de então. Enquanto Trotsky tinha pretensões de estendê-la por toda
a Europa e criticava a burocracia stalinista, Stálin achava que deveria permanecer
limitada ao bloco de países soviéticos. Trotsky passara então de grande condutor
da revolução de 17 a um contra-revolucionário traidor, chegando ao extremo de
ser considerado um aliado dos fascistas. Um inimigo útil para o jogo político de
Stálin, enquanto fosse de seu interesse. O próprio Trotsky já no exílio, reconhece
que havia subestimado a capacidade de Stalin, um militante sem muita cultura e
um tanto grosseiro, de manipular o Partido. Trotsky em seus pensamentos lembra
que devia ter desconfiado daqueles “olhos de réptil”, que tão logo assumiu o poder
passou a reprimir, perseguir e eliminar seus oponentes ou quem ele assim
considerasse, fossem antigos militantes, intelectuais, artistas, ou, trabalhadores,
aqueles mesmos em nome de quem os comunistas diziam ter feito a revolução.
A esquerda em um mundo então dividido entre o fascismo de Hitler e seus aliados
e a suposta salvação pelo comunismo stalinista, estava desorientada, e uma parte
dela acreditava que o regime de governo de Stálin poderia ser o melhor para todos.
Mas na verdade o mundo estava entre dois regimes totalitários protagonizados por
dois tiranos manipuladores, responsáveis pelos maiores crimes contra a
humanidade no século 20, com a única diferença que no caso de Hitler o genocídio
ocorreu durante a guerra e Stálin o praticou em tempos de paz. Para Trotsky o
comunismo começava a cavar sua própria cova.
REVOLUÇÃO RUSSA
Trotsky em suas reflexões no exílio, em flashes de lucidez ou desânimo, chegou a
se perguntar se teria valido a pena tantas mortes, todo sofrimento e sacrifício até
mesmo de sua família em nome de uma causa, mas procurava manter o otimismo
com a firme convicção de que tinha um compromisso com a revolução. Mas
estava cada vez mais isolado.
Em paralelo à narrativa sobre a vida de Trotsky no exílio, surge o personagem de
Ramón Mercader, um jovem revolucionário espanhol cuja as ideias sofriam grande
influência da guerra civil em seu país onde participava como combatente, e de sua
mãe controladora, também uma revolucionária que acreditava que antes da
revolução comunista era preciso ganhar a guerra na Espanha, portanto não
podiam prescindir da ajuda de Moscou nem de servir ao regime de Stálin para o
que fosse necessário. Mercader influenciado por sua mãe, porém muito mais por
uma jovem revolucionária radical por quem era apaixonado e queria impressionar,
acabou aceitando, apesar de certa hesitação no início, uma importante missão que
ele ainda nem sabia qual era. Mas fora avisado que essa missão iria mudar
completamente sua vida. A fé cega em uma ideologia e em um líder que dela
se apropria, tenha essa ideologia a forma que tiver, pode transformar uma pessoa
se apropria, tenha essa ideologia a forma que tiver, pode transformar uma pessoa
e fazê-la cometer todo tipo de perversidades acreditando estar no caminho certo.
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
Praça da República dos meus sonhos
- onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
- onde beatificados vêm agitar as massas
- onde Garcia Lorca espera seu dentista
- onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces (...)
- Roberto Piva
A ARTE DE TRANSGREDIR (uma introdução a Roberto Piva)
João Silvério Trevisan
1.
A história
pessoal do poeta Roberto Piva começa e gira em torno da cidade de São Paulo.
Ele cresceu e formou-se entre a capital e as antigas fazendas do pai, no
interior do Estado de São Paulo. Seus primeiros poemas foram publicados em
1961, quando tinha 23 anos. Nessa mesma época, integrou a famosa Antologia
dos Novíssimos, de Massao Ohno, na qual se lançaram vários poetas brasileiros
iniciantes, que depois desenvolveram uma obra poética de importância. Piva
formou-se em sociologia. Sobreviveu em grande parte como professor de estudos
sociais e história. Em suas aulas aos adolescentes do segundo grau, costumava
trabalhar as matérias a partir de poemas que os fazia ler e interpretar. Foi
um professor de muito sucesso, com rara vocação como pedagogo. Nos anos de
1970, tornou-se produtor de shows de rock. Piva mora em São Paulo, cidade que
lhe parece apocalíptica, exemplo do que não deve ser feito contra o meio
ambiente, mas que forneceu todo o pano de fundo para sua obra poética. Tem
medo de avião.
Por isso, raramente se distanciou demais da
capital, de onde foge sempre que pode, de ônibus ou carro, sobretudo para o
litoral sul do estado de São Paulo, refugiando-se em casa de
amigos na Ilha Comprida ou em pensões baratas de Iguape. É lá que realiza
seus rituais xamânicos e entra em contato com seu animal xamânico, o gavião.
2.
A
genealogia poética de Roberto Piva apresenta raízes e inclui influências
muito raras na literatura brasileira, formando uma mistura-fina que é única
por sua erudição, mas também por sua transgressão. Começa com Dante
Alighieri. Ainda na década de 60, por três anos Piva aprofundou-se nos
estudos da Divina Comédia, orientado por Eduardo Bizzarri, adido
cultural do Consulado da Itália em São Paulo. Esse contato com Dante foi como
seu imprinting poético-filosófico: marcou para sempre sua visão de
mundo, sua política e sua poesia.
Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo
William Blake, Piva começou a aprofundar sua experiência mais direta com o
sagrado e a vida interior.
A entrada em cena de Hölderlin e dos poetas
expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl temperaram essa
experiência com uma ponta de pessimismo, que deixou de ser circunstancial
quando, ainda na década de 60, Roberto Piva teve contato com a obra de um filósofo
praticamente desconhecido, no Brasil do período: Friedrich
Nietzsche.
À experiência juvenil de Piva agregou-se a contundência
desse profeta pessimista e decifrador da alma moderna. Mas nem só de
espírito, nem só de intelecto fez-se o aprendizado juvenil de
Roberto Piva, que cedo descobriu Rimbaud e Lautréamont, recebendo a
influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da
expressão racional e das escolas literárias.
A partir daí iniciou-se em sua vida o cultivo do
rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das
vanguardas do começo do século 20, Roberto Piva absorveu lições do
surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René
Crevel. É um dos três únicos poetas brasileiros a constar no famoso Dicionário
Geral do Surrealismo, publicado na França. A partir de Artaud, Piva
incorporou a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida.
O dito artaudiano “para conhecer minha obra, leia-se minha
vida” teve em Piva a contrapartida: “só acredito em poeta
experimental que tem vida experimental”. Também é flagrante em sua poesia a
influência dos futuristas italianos (com seu culto à fragmentação moderna),
acrescida de algumas expressões musicais da contemporaneidade do pós-guerra,
através da onipresente marca do jazz e da bossa nova, duas fidelíssimas
paixões de Roberto Piva. Mas há mais duas fortes presenças
contemporâneas em sua poética. Uma é a beat generation americana,
da qual Piva não só absorveu a estilística fragmentada e a temática que
aproxima o contemporâneo do arcaico, mas através da qual também
sedimentou a orientação basicamente transgressiva dos costumes do seu tempo.
Na década de 70, a transgressão foi reforçada pela
descoberta do outsider Pier Paolo Pasolini, protótipo do
intelectual-profeta que caminha nas frinchas do paradoxo. Dos poetas
brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo
Mendes - com seu surrealismo intenso, expontâneo e sensorial, ao
contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo
aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos
finais da construção poética de Roberto Piva evidenciam uma
substancial ligação com o aspecto mágico.
Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de
Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo,
além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a
natureza.
Essa sacralidade é, para Piva, a única salvação possível
ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu
projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto
forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para
aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos
não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas
indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultua seus
orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum) mas também toca tambor para invocar
seu animal xamânico, o gavião.
Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado,
Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de
drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição
dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica
homossexual, resgatando para a modernidade o amor grego, como um componente
de transgressão do desejo.
Tome-se, como referência, seu "Poema XIV", de 20
Poemas com Brócoli, dedicado ao Carlinhos:
"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas
imberbes & brancas.
vou
dilapidar a riqueza de tua
adolescência.
vou queimar teus
olhos
com ferro em brasa.
vou
incinerar teu coração de carne &
de
tuas cinzas vou fabricar a
substância
enlouquecida das
cartas
de amor." (20 Poemas com Brócoli, 1981)
3.
Os
traços mais presentes na obra de Roberto Piva giram em torno dessas
influências ou ao menos partem delas. Trata-se, antes de tudo, de uma poética
de transgressão: na abordagem, na temática e na quebra de fronteiras entre os
contrários. Portanto, uma transgressão que desemboca no paradoxo - por
exemplo, entre carne & espírito, vida & obra, contemporâneo &
arcaico. Sua expressão poética persegue o rastilho da escrita
automática de extração surrealista: recuperar para a poesia os estados
primitivos do sonho e da loucura.
No caso de Roberto Piva, talvez fosse mais adequado falar
em escrita delirante. Essa prática levou, também no caso do poeta
brasileiro, à utilização do método da livre associação de idéias, a
partir da crença na importância poética do inconsciente. Resultado: metáforas
explosivas que Roberto Piva articula com estonteante propriedade. Do seu
poema “A vida me carrega no ar como um gigantesco abutre”, veja-se
o final delirante:
"minha dor é um anjo ferido
de morte
você é um pequeno deus verde
& rigoroso
horários de morte cidades cemitérios
a morte é a ordem do dia
a noite vem raptar o que
sobra de um soluço". (Coxas,
1979)
Ou, no início do seu "Poema VII" de 20
Poemas com brócoli, note-se a homenagem embutida numa metáfora explosiva, que
mistura elementos de sensualidade contraditória:
"mestre Murilo Mendes tua
poesia são
os sapatos de abóboras que eu calço
nestes dias de verão." (20 Poemas com brócoli, 1981)
Outro traço marcante na obra de Roberto Piva é o total
desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que, no seu
caso, caotiza-se, na tentativa de transpor para a poética escrita o ritmo
sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz.
A rítmica entrecortada, a batida imprevista e a
respiração irregular, com notas se sucedendo lânguidas, são traduzidas
inclusive numa distribuição desordenada dos versos o espaço da página.
Veja-se como o poema dança, neste seu "O Robot Pederasta":
"Não vale
sair
com asas
onde
o
cra cra cra cra cra cra cra
cra cra cra cra cra cra
se amassava
nas
velas
apagadas
quem
quer
o
telhado
de
lágrimas?
beberei
veneno
contra
teu
temperamento
alegria
que se
espera
raio
X de gente que
desce
do alto
porta
acesa
olhar
inchado no escuro
Signorine, la danza della Morte è servita
algumas
ficaram
LOUCAS"
(Piazzas,
1964)
Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de uma obra
pontuada por cortes cinematográficos que remetem ao cinema
experimental, com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. Confira-se
neste “Ganimedes 76”:
"Teu sorriso
olhinhos como margaridas negras
meu amor navegando na tarde
batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de
fuligem
cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão
rococó
força de um corpo frágil como âncoras
gostei de você eu também
amanhã então às 7
amanhã às 7
tudo começa agora num ritual lento & cercados de
gardênias
de pano
Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde
de
São Paulo como um desejo espetacular tão
dopado
de coragem
marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti
assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem" (Abra
os olhos e diga Ah!, 1976)
No geral, temos uma temática muito
diversificada, que parte do urbano e quotidiano, passando pelo erótico e
carnal, até atingir o metafísico e o sagrado. Confira-se neste trecho do seu
"Beija-flor badulaque":
"nus & feéricos/ olho no gatilho meia-lua/ nado
esta
manhã a favor da correnteza/ à deriva/ no miolo do
furacão/ eu era uma Sibila entre os gonzos da lingua-
gem/ Samba-Vírus/ exus nanicos carregando cabaças
de pedra da lua no portal do meu ouvido/ cruzamento
das Avenidas Assassinato & 69/ garoto-pombinha no
balcão da lanchonete/ esperando o pernilongo da Mor-
te/ estrelas rachadas gotejam leite dos deuses/ é
com
este que eu vou sambar até a Pradaria -Kamikase/ no
trecho Belém-Brasília da Teogonia" (Quizumba,
1983)
4.
O
resultado geral é uma expressão poética fragmentada, que resume
exemplarmente as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da
contemporaneidade. Assim, Roberto Piva inaugurou traços singulares no contexto
poético brasileiro, que fazem de sua obra uma das mais originais e inovadoras
dentro da poesia brasileira contemporânea. Como sempre esteve eqüidistante
das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria escola.
Roberto Piva persegue e vive o ideal do poeta-profeta,
como menciona em seu "Poema Vertigem":
"Eu sou uma metralhadora em
estado
de Graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto".
No espelho da poesia, sua imagem é daquele que reflete, de
modo nem sempre aceitável, os paradoxos da contemporaneidade, através dos
seus próprios. Define-se a si mesmo como um anarquista de direita. E,
muito contemporaneamente, ama as corridas de carros, ainda que
criticando o culto à tecnologia. Com suas transgressões na vida e na
poesia - que formam um só organismo - Piva veio para confundir.
Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento
dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração de silêncio da qual
sua obra poética tem sido vítima.
Como gente demais no Brasil não o conhece, encerro com
mais um exemplo da sua contundência. Saboreiem este festival de
musicalidade, ritmo e delírio expressivo em seu
"Piazza V", um dos poemas mais emblemáticos da
sua obra emblemática:
"Oswald Spengler tem uma
porta
no seu tornozelo
&
nuvens através dele
limpando
a pele
que
projeta
um
velho cachecol marrom
em
seu olho
eu penso
pelos
seus
líquidos
compassos de sátiro
até
um
cenário de músculos
impedido
de esmagar
o
carvão de
vidro
verde
que
aquece
a
estrela nua de
anteontem
Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo
batendo
até
altas
horas" (Piazzas, 1964)
|
João Silvério Trevisan (Brasil, 1944). Ficcionista, ensaísta
e tradutor. Autor de livros como Em Nome do Desejo (romance, 1983), Devassos
no Paraíso (ensaio histórico-antropológico, 1986), eSeis Balas num Buraco
Só: A Crise do Masculino (ensaio, 1998). Palestra proferida na
Biblioteca Mário de Andrade, 24/04/96, em São Paulo. Posteriormente publicada
em Pedaço de mim (Ed. Record, 2002). Foto de Roberto Piva: Mario
Rui Feliciani. Página ilustrada com obras da artista Mirta Kupferminc (Argentina).
Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/
ROBERTO PIVA EM CINCO POEMAS
Outubro 19, 2011
paranoia (1963) foi um meteoro na poesia brasileira. eu
só posso imaginar a cara dos leitores (enquanto concretos paulistas e cariocas
digladiavam pela ponta da vanguarda, a geração de 45 rimava, cabral concentrava
e drummond não dava a mínima, ou até dava, mas do seu jeito reservado) diante
da poesia de roberto piva (1937-2010). aquilo só podia vir do céu – do céu
material, é claro, que pro piva deus (o deus dos cristãos, ao menos), tava fora
da parada.
era uma mistura de lautréamont com ácido lisérgico, numa
levada ginsberg, pelo submundo noturno de são paulo. perto do piva, os
experimentos surrealistas de murilo mendes e jorge de lima pareciam bossa nova
encarando ornette coleman. talvez por isso se leia quase que só o paranoia,
pela sua radicalidade e singulraidade na poesia brasileira. pra aumentar um
pouco o repertório da sua poesia é que (munido dos 3 volumes da sua poesia
publicados pela editora globo, organizados por alcir pécora, que teve a
indecência de nos conceder essa alegria) decidi mostra o rabo – louco – do
meteoro. 5 poemas, não necessariamente os melhores, os mais importantes – 5
poemas da minha arbitrariedade (movido pelo fato de ficarem na minha memória),
mas que podem, de algum modo fazer o seguinte desenho:
partir do delírio imagético do paranoia (com sua
verve demolidora, cf. o caráter destrutivo, de
walter benjamin), passar pelas alucinações sintáticas de piazzas (1964)
e depois desaguar nos poemas que apresentam uma maior discursividade e
positividade: ou seja, uma ética apresentada para além do caráter destrutivo,
que estará ligada a um esoterismo sui generis, a imagéticas do xamanismo e
de uma ecologia que em grande parte antecipa as discussões contemporâneas.
assim, pois, o 5, em ordem cronológica.
Visão 1961
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de
fósforo
invocando as coxas do
primeiro amor brilhando como uma
flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo
do pálido
maxilar ainda
desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer
o perfume
das velas e dos
violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
cafetinas magras
ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
da Loucura repartiam
lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
lábios de menina
febril colados na vitrina onde almas coloridas
tinham 10% de
desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários
dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por
caixas de matéria
plástica eriçando o
pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes
de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge
como um
Lótus colando sua
boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu
que renascem nas
caminhadas
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma
desarticulando
aos trambolhões pelas
esquinas onde conheci os estranhos
visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de
Harpias
vacilava com cabelos
presos nos luminosos e minha imaginação
gritava no perpétuo
impulso dos corpos encerrados pela
Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de
excrementos
secos enquanto um
milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias
de cinza OH cidade de
lábios tristes e trêmulos onde encontrar
asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
em sua vida de
Camomila nas vielas onde meninos dão o cu
e jogam malha e os
papagaios morrem de Tédio nas cozinhas
engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com
urtigas
sob o chapéu de prata
do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
verteram monstros
inconcebíveis
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam
com
transporte e em
silêncio nos telefones nas portas nos capachos
das Catedrais sem
Deus
imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e
condolências
pendurando nos
cabides de vento das maternidades um batalhão
de novos idiotas
os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo
invocando
em jejum de Vida as
trombetas de fogo do Apocalipse
afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H
árvore
branca coberta de
anjos e loucos adiando seus frutos
até o século futuro
meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho
platônico dos postes
da rua Aurora comichando nas omoplatas
irreais do meu
Delírio
arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade
por
quinze mil perdidas
almas sem rosto destrinçando barrigas
adolescentes numa
Apoteose de intestinos
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos
esperando
a sangria diurna de
olhos fundos e neblina enrolada na voz
exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios
demoníacos pelo
cometa sem fé
meditando beatamente nos púlpitos agonizantes
minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana
semi-aberta da
Pureza Estagnada e
gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras
cruzadas no olhar
as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o
arco-íris
de Orfeu amortalhado
despejavam um milhão de crianças atrás das
portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos
recém-nascidos vagabundeavam
acompanhadas pelas
pombas a serem fuziladas pelo veneno
da noite no coração
seco do amor solar
meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de
almofadas
furadas derrama sua
cabeça e sua barba como um enxoval noturno
estende até o Mar
no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha
memória
atirada no Abismo e
meus olhos meus manuscritos meus amores
pulam no Caos
(paranoia, 1963)
Piazza I
Uma tarde
é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
uma tarde de inverno
sobre um grave pátio
onde
garòfani milk-shake & Claude
obcecado com anjos
ou vastos motores que giram com
uma graça seráfica
tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado
provado sonhado
& longos viveiros municipais
sem procurar compreender
imaginar
a medula sem olhos
ou pássaros
virgens
aconteceu que eu revi
a simples torre mortal
do Sonho
não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
Swift Jarry com barulho
de sinos
nas minhas noites de bárbaro
os carros de fogo
os trapézios de mercúrio
suas mãos escrevendo
& pescando
ninfas escatológicas
pequenos canhoes do sangue & os grandes olhos abertos
para algum milagre da Sorte
(piazzas, 1964)
eu sou o
jet-set do amor maldito
DENTRO DA NOITE
& SUAS CÓLICAS ILUMINADAS
os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão
DISPOSIÇÃO
DE IR A DERIVA NOS DADOS DO AMOR
espinafre pela manhã & queijo em pasta
almas-esportivas com flores entre os dentes
minha laranja se
abrindo como uma porta
TUA VOZ Ê
ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar
a parede do mundo
ESTAMOS
DEFINITIVAMENTE NA VIDA
(abra o olhos e diga ah!, 1975)
XX
vocês estão cegos graças ao temor
olhares mortos sugando-me o sangue
não serei vossa sobremesa nesta curta
temporada
no inferno
eu quero que seus rostos cantem
eu quero que seus corações explodam em
línguas de
fogo
meu silêncio é um galope de búfalos
meu amor cometa nômade de
riso
indomável
façam seus orifícios cantarem o hino
à estrela
da manhã
torres & cabanas onde foi flechado o
arco-íris
eu abandonei o passado a esperança
a memória
o vazio da década de 70
sou um navio lançado ao
alto-mar
das futuras
combinações
(20 poemas com brócoli, 1981)
Poema vertigem
Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou o tecno pagão
Eu sou o Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas
convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande &
Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua
namorada
de vagina colorida
(ele vestia a
calcinha dela
& dançava feito
Shiva
no meu corpo)
Eu sou o nômade de Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã
coberto
de peles e
andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto
(ciclones, 1997)
Fonte: https://viagemdecabeceira.wordpress.com/
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