ROBERTO PIVA EM CINCO POEMAS
Outubro 19, 2011
paranoia (1963) foi um meteoro na poesia brasileira. eu
só posso imaginar a cara dos leitores (enquanto concretos paulistas e cariocas
digladiavam pela ponta da vanguarda, a geração de 45 rimava, cabral concentrava
e drummond não dava a mínima, ou até dava, mas do seu jeito reservado) diante
da poesia de roberto piva (1937-2010). aquilo só podia vir do céu – do céu
material, é claro, que pro piva deus (o deus dos cristãos, ao menos), tava fora
da parada.
era uma mistura de lautréamont com ácido lisérgico, numa
levada ginsberg, pelo submundo noturno de são paulo. perto do piva, os
experimentos surrealistas de murilo mendes e jorge de lima pareciam bossa nova
encarando ornette coleman. talvez por isso se leia quase que só o paranoia,
pela sua radicalidade e singulraidade na poesia brasileira. pra aumentar um
pouco o repertório da sua poesia é que (munido dos 3 volumes da sua poesia
publicados pela editora globo, organizados por alcir pécora, que teve a
indecência de nos conceder essa alegria) decidi mostra o rabo – louco – do
meteoro. 5 poemas, não necessariamente os melhores, os mais importantes – 5
poemas da minha arbitrariedade (movido pelo fato de ficarem na minha memória),
mas que podem, de algum modo fazer o seguinte desenho:
partir do delírio imagético do paranoia (com sua
verve demolidora, cf. o caráter destrutivo, de
walter benjamin), passar pelas alucinações sintáticas de piazzas (1964)
e depois desaguar nos poemas que apresentam uma maior discursividade e
positividade: ou seja, uma ética apresentada para além do caráter destrutivo,
que estará ligada a um esoterismo sui generis, a imagéticas do xamanismo e
de uma ecologia que em grande parte antecipa as discussões contemporâneas.
assim, pois, o 5, em ordem cronológica.
Visão 1961
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de
fósforo
invocando as coxas do
primeiro amor brilhando como uma
flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo
do pálido
maxilar ainda
desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer
o perfume
das velas e dos
violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
cafetinas magras
ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
da Loucura repartiam
lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
lábios de menina
febril colados na vitrina onde almas coloridas
tinham 10% de
desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários
dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por
caixas de matéria
plástica eriçando o
pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes
de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge
como um
Lótus colando sua
boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu
que renascem nas
caminhadas
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma
desarticulando
aos trambolhões pelas
esquinas onde conheci os estranhos
visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de
Harpias
vacilava com cabelos
presos nos luminosos e minha imaginação
gritava no perpétuo
impulso dos corpos encerrados pela
Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de
excrementos
secos enquanto um
milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias
de cinza OH cidade de
lábios tristes e trêmulos onde encontrar
asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
em sua vida de
Camomila nas vielas onde meninos dão o cu
e jogam malha e os
papagaios morrem de Tédio nas cozinhas
engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com
urtigas
sob o chapéu de prata
do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
verteram monstros
inconcebíveis
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam
com
transporte e em
silêncio nos telefones nas portas nos capachos
das Catedrais sem
Deus
imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e
condolências
pendurando nos
cabides de vento das maternidades um batalhão
de novos idiotas
os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo
invocando
em jejum de Vida as
trombetas de fogo do Apocalipse
afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H
árvore
branca coberta de
anjos e loucos adiando seus frutos
até o século futuro
meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho
platônico dos postes
da rua Aurora comichando nas omoplatas
irreais do meu
Delírio
arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade
por
quinze mil perdidas
almas sem rosto destrinçando barrigas
adolescentes numa
Apoteose de intestinos
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos
esperando
a sangria diurna de
olhos fundos e neblina enrolada na voz
exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios
demoníacos pelo
cometa sem fé
meditando beatamente nos púlpitos agonizantes
minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana
semi-aberta da
Pureza Estagnada e
gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras
cruzadas no olhar
as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o
arco-íris
de Orfeu amortalhado
despejavam um milhão de crianças atrás das
portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos
recém-nascidos vagabundeavam
acompanhadas pelas
pombas a serem fuziladas pelo veneno
da noite no coração
seco do amor solar
meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de
almofadas
furadas derrama sua
cabeça e sua barba como um enxoval noturno
estende até o Mar
no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha
memória
atirada no Abismo e
meus olhos meus manuscritos meus amores
pulam no Caos
(paranoia, 1963)
Piazza I
Uma tarde
é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
uma tarde de inverno
sobre um grave pátio
onde
garòfani milk-shake & Claude
obcecado com anjos
ou vastos motores que giram com
uma graça seráfica
tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado
provado sonhado
& longos viveiros municipais
sem procurar compreender
imaginar
a medula sem olhos
ou pássaros
virgens
aconteceu que eu revi
a simples torre mortal
do Sonho
não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
Swift Jarry com barulho
de sinos
nas minhas noites de bárbaro
os carros de fogo
os trapézios de mercúrio
suas mãos escrevendo
& pescando
ninfas escatológicas
pequenos canhoes do sangue & os grandes olhos abertos
para algum milagre da Sorte
(piazzas, 1964)
eu sou o
jet-set do amor maldito
DENTRO DA NOITE
& SUAS CÓLICAS ILUMINADAS
os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão
DISPOSIÇÃO
DE IR A DERIVA NOS DADOS DO AMOR
espinafre pela manhã & queijo em pasta
almas-esportivas com flores entre os dentes
minha laranja se
abrindo como uma porta
TUA VOZ Ê
ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar
a parede do mundo
ESTAMOS
DEFINITIVAMENTE NA VIDA
(abra o olhos e diga ah!, 1975)
XX
vocês estão cegos graças ao temor
olhares mortos sugando-me o sangue
não serei vossa sobremesa nesta curta
temporada
no inferno
eu quero que seus rostos cantem
eu quero que seus corações explodam em
línguas de
fogo
meu silêncio é um galope de búfalos
meu amor cometa nômade de
riso
indomável
façam seus orifícios cantarem o hino
à estrela
da manhã
torres & cabanas onde foi flechado o
arco-íris
eu abandonei o passado a esperança
a memória
o vazio da década de 70
sou um navio lançado ao
alto-mar
das futuras
combinações
(20 poemas com brócoli, 1981)
Poema vertigem
Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou o tecno pagão
Eu sou o Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas
convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande &
Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua
namorada
de vagina colorida
(ele vestia a
calcinha dela
& dançava feito
Shiva
no meu corpo)
Eu sou o nômade de Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã
coberto
de peles e
andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto
(ciclones, 1997)
Fonte: https://viagemdecabeceira.wordpress.com/
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