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domingo, 28 de fevereiro de 2016

























ROBERTO PIVA EM CINCO POEMAS

Outubro 19, 2011

paranoia (1963) foi um meteoro na poesia brasileira. eu só posso imaginar a cara dos leitores (enquanto concretos paulistas e cariocas digladiavam pela ponta da vanguarda, a geração de 45 rimava, cabral concentrava e drummond não dava a mínima, ou até dava, mas do seu jeito reservado) diante da poesia de roberto piva (1937-2010). aquilo só podia vir do céu – do céu material, é claro, que pro piva deus (o deus dos cristãos, ao menos), tava fora da parada.
era uma mistura de lautréamont com ácido lisérgico, numa levada ginsberg, pelo submundo noturno de são paulo. perto do piva, os experimentos surrealistas de murilo mendes e jorge de lima pareciam bossa nova encarando ornette coleman. talvez por isso se leia quase que só o paranoia, pela sua radicalidade e singulraidade na poesia brasileira. pra aumentar um pouco o repertório da sua poesia é que (munido dos 3 volumes da sua poesia publicados pela editora globo, organizados por alcir pécora, que teve a indecência de nos conceder essa alegria) decidi mostra o rabo – louco – do meteoro. 5 poemas, não necessariamente os melhores, os mais importantes – 5 poemas da minha arbitrariedade (movido pelo fato de ficarem na minha memória), mas que podem, de algum modo fazer o seguinte desenho:
partir do delírio imagético do paranoia (com sua verve demolidora, cf. o caráter destrutivo, de walter benjamin), passar pelas alucinações sintáticas de piazzas (1964) e depois desaguar nos poemas que apresentam uma maior discursividade e positividade: ou seja, uma ética apresentada para além do caráter destrutivo, que estará ligada a um esoterismo sui generis, a imagéticas do xamanismo e de uma ecologia que em grande parte antecipa as discussões contemporâneas. assim, pois, o 5, em ordem cronológica.

Visão 1961

as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
 invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma
 flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido
 maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume
 das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
 chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
 cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
 da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
 lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas
 tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários
 dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria
 plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes
 de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um
 Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu
 que renascem nas caminhadas
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando
 aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos
 visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias
 vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação
 gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela
 Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos
 secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias
 de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar
 asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
 em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu
 e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas
 engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas
 sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
 verteram monstros inconcebíveis
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com
 transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos
 das Catedrais sem Deus
imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências
 pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão
 de novos idiotas
os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando
 em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse
afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore
 branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos
 até o século futuro
meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho
 platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas
 irreais do meu Delírio
arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por
 quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas
 adolescentes numa Apoteose de intestinos
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando
 a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz
 exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo
 cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes
minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana semi-aberta da
 Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras
 cruzadas no olhar
as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris
 de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das
 portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam
 acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno
 da noite no coração seco do amor solar
meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de almofadas
 furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno
 estende até o Mar
no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória
 atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores
 pulam no Caos

(paranoia, 1963)

Piazza I

       Uma tarde
                é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
              uma tarde de inverno
                                 sobre um grave pátio
          onde garòfani    milk-shake & Claude
                          obcecado com anjos
             ou vastos motores que giram com
                             uma graça seráfica
                tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado     provado    sonhado
                & longos viveiros municipais
            sem procurar compreender
                     imaginar
              a medula sem olhos
         ou pássaros virgens
                  aconteceu que eu revi
       a simples torre mortal do Sonho
                         não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
   Swift Jarry com barulho
         de sinos nas minhas noites de bárbaro
   os carros de fogo
               os trapézios de mercúrio
       suas mãos escrevendo & pescando
                    ninfas escatológicas
pequenos canhoes do sangue & os grandes olhos abertos
              para algum milagre da Sorte

(piazzas, 1964)


         eu sou o jet-set do amor maldito
      DENTRO DA NOITE & SUAS CÓLICAS ILUMINADAS
os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão
          DISPOSIÇÃO DE IR A DERIVA NOS DADOS DO AMOR
              espinafre pela manhã & queijo em pasta
                  almas-esportivas com flores entre os dentes
     minha laranja se abrindo como uma porta
         TUA VOZ Ê ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar
     a parede do mundo
         ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA

(abra o olhos e diga ah!, 1975)


XX

vocês estão cegos graças ao temor
olhares mortos sugando-me o sangue
não serei vossa sobremesa nesta curta
            temporada no inferno
eu quero que seus rostos cantem
eu quero que seus corações explodam em
            línguas de fogo
meu silêncio é um galope de búfalos
meu amor cometa nômade de
            riso indomável
façam seus orifícios cantarem o hino
            à estrela da manhã
torres & cabanas onde foi flechado o
            arco-íris
eu abandonei o passado a esperança
            a memória o vazio da década de 70
sou um navio lançado ao
            alto-mar das futuras
            combinações

(20 poemas com brócoli, 1981)

Poema vertigem

Eu sou a viagem de ácido
  nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
  na montanha
Eu sou o tecno pagão
Eu sou o Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
  das garotas convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
  Casa Grande & Senzala
Eu sou a orgia com o
  garoto loiro e sua namorada
  de vagina colorida
  (ele vestia a calcinha dela
  & dançava feito Shiva
  no meu corpo)
Eu sou o nômade de Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
  (& o Xamã coberto
  de peles e andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
  de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
  estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto


(ciclones, 1997)

Fonte: https://viagemdecabeceira.wordpress.com/

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