“ENTRE A
FOTO E O FATO”
EM
HOMENAGEM AO POETA MAURO FONSECA
Plus douce
qu’aux enfants la chair des pommes sures...
(Mais doce que ao menino os frutos não maduros...)
Arthur Rimaud, “Le bateau ivre”
Trad. Ivo Barroso
Fernando
Fiorese
Dois
fenômenos complementares e adversativos assinalam o acidentado trânsito entre a
infância e a juventude: a tarefa trôpega, mas urgente e apaixonada, de
participar dos acontecimentos do mundo e o medo pânico de afirmar-se homem
abismado no tempo presente, de fazer-se sujeito histórico e assim enfrentar a
inelutável consciência da morte – “essa terrível prenda” que o fim da infância
nos dá. Daí que, a princípio e no mais das vezes, as incursões aventurosas do
adolescente para além das paredes da casa paterna sejam apenas a busca de um
outro abrigo, uma outra clausura, algo como um quadrado mágico porque
resguardado pela linha de força que atrai o jovem e o mantém junto ao círculo
de amigos. E quase ao modo de uma ciranda infantil – sempre de mãos dadas, ainda
que em segredo, seja por mero pudor ou para afirmação das suas personae –,
a confraria de garotos e garotas logo rubrica no mapa da cidade, não por acaso,
as suas rotas de fuga e os seus lugares protegidos, caricaturas de um útero sem
mãe – os mesmos percursos, as mesmas ruas, as mesmas esquinas, os mesmos bares,
as mesmas praças, os mesmos locais ermos e incógnitos.
Em muitos
outros casos, esta tensão entre as delícias libertárias e libertinas prometidas
pela vida exterior e os medos próprios daquele que se lança ao mar do mundo sem
roteiro ou bússola faz com que a criança imaginosa prestes a morrer custe a
despregar do jovem em luta para vir a ser. Por conta disto, a ficção – em
particular aquela amealhada nos livros, nos filmes, nas letras de música e nas
peças de teatro – costuma contaminar o real, a ponto do olhar do adolescente
enfeitar os acontecimentos mais ordinários e as pessoas mais prosaicas com
características emprestadas de enredos literários e personagens
cinematográficas. As demasias da fabulação infantil demoram a arrefecer e
desertar, pois são o anteparo necessário ao choque de realidade que transtorna
as verdades assentadas no chão sólido e seguro da ciência familiar. A cada
movimento, o mundo adulto dá notícia ao calouro de que não há conta, peso ou
medida para a matéria bruta e caótica da realidade. Resta-lhe, pois, o
imaginário comopièce de résistance ao cabal desmantelo do mundo que
conhece e acredita real. Ao menos até que também a imaginação seja domesticada
ou arrematada pela pragmática da sociedade de consumo.
Foi aos
dezessete anos que conheci o poeta Mauro Fonseca (1962-1988). Aos dezessete
anos, ambos às voltas com a “Sturm und drang of adolescence”, conforme a feliz
imagem que W. H. Auden (1907-1973) emprega em “Letter to Lord Byron” para
traduzir a sua própria travessia da infância à mocidade:
We all grow
up the same way, more or less;
Life is not
known no give away her presents;
She only
swops. The unselfconsciousness
That
children share with animals and peasants
Sinks in
the Sturm und drang of adolescence.
Like other
boys I lost my taste for sweets,
Discovered
sunsets, passion, God, and Keats.
Todos
crescemos de modo igual;
A vida não
dá nada de presente;
Ela só
barganha. O inconsciente,
Que
partilham menino e animal,
Afunda na Sturm
und Drang do moço.
Tal outros
garotos, perdi o gosto,
Topei
poentes, paixões, Deus e Keats.
(Tradução
minha.)
|
Arthur
Rimbaud aos dezessete anos, outubro de 1871
Fotografia
de Étienne Carjat
|
Dezessete
anos – a idade que, através do poema “Roman”, o enfant terrible Arthur
Rimbaud (1854-1891) elegeu como símbolo da paixão abrupta e incerta, da
errância, da boemia e da rebeldia da juventude:
On n’est
pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
– Un beau
soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés
tapageurs aux lustres éclatants!
– On va
sous les tilleuls verts de la promenade.
Les
tilleuls sentent bon dans les bons soirs de juin!
L’air est
parfois si doux qu’on ferme la paupière;
Le vent
chargé de bruits, – la ville n’est pas loin,
A des
parfums de vigne et des parfums de bière...
II
– Voilà
qu’on aperçoit un tout petit chiffon
D’azur
sombre, encadré d’une petite branche,
Piqué d’une
mauvaise étoile, qui se fond
Avec de
doux frissons, petite et toute blanche...
Nuit de
juin! Dix-sept ans! – On se laisse griser.
La sève est
du champagne et vous monte à la tête...
On divague;
on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite
là, comme une petite bête...
III
Le cœur fou
Robinsonne à travers les romans,
– Lorsque,
dans la clarté d’un pâle réverbère,
Passe une
demoiselle aux petits airs charmants,
Sous
l’ombre du faux-col effrayant de son père...
Et, comme
elle vous trouve immensément naïf,
Tout en
faisant trotter ses petites bottines,
Elle se
tourne, alerte et d’un mouvement vif...
– Sur vos
lèvres alors meurent les cavatines...
IV
Vous êtes
amoureux. Loué jusqu’au mois d’août.
Vous êtes
amoureux. – Vos sonnets La font rire.
Tous vos
amis s’en vont, vous êtes mauvais goût.
– Puis
l’adorée, un soir, a daigné vous écrire!...
– Ce
soir-là,... – vous rentrez aux cafés éclatants,
Vous
demandez des bocks ou de la limonade...
– On n’est
pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu’on a
des tilleuls verts sur la promenade.
I
Não se pode
ser sério aos dezessete anos.
– Um dia,
dá-se adeus ao chope e à limonada,
À bulha dos
cafés de lustres suburbanos!
– E vai-se
sob a verde aléia de uma estrada.
O quente
odor da tília a tarde quente invade!
Tão puro e
doce é o ar, que a pálpebra se arqueja;
De vozes
prenhe, o vento – ao pé vê-se a cidade, –
Tem
perfumes de vinha e cheiros de cerveja...
II
– Eis que
então se percebe uma pequena tira
De azul
escuro, em meio à ramaria franca,
Picotada
por uma estrela má, que expira
Em doce
tremular, muito pequena e branca.
Noite
estival! A idade! – A gente se inebria;
A seiva
sobe em nós como um champanhe inquieto...
Divaga-se;
e no lábio um beijo se anuncia,
A palpitar
ali como um pequeno inseto...
III
O peito
Robinsona em clima de romance,
Quando – na
palidez da luz de um poste, vai
Passando
uma gentil mocinha, mas no alcance
Do
colarinho duro e assustador do pai...
E como está
te achando imensamente alheio,
Fazendo
estrepitar as pequenas botinas,
Ela se
vira, alerta, em rápido meneio...
– Em teus
lábios então soluçam cavatinas...
IV
Estás
apaixonado. Até o mês de agosto.
Fisgado. –
Ela com teus sonetos se diverte.
Os amigos
se vão: és tipo de mau gosto.
– Um dia, a
amada enfim se digna de escrever-te!...
Nesse dia,
ah! meu Deus... – com teus ares ufanos,
Regressas
aos cafés, ao chope, à limonada...
– Não se
pode ser sério aos dezessete anos
Quando a
tília perfuma as aléias da estrada.
(Trad. Ivo
Barroso)
Aos
dezessete anos, Rimbaud foi retratado por Étienne Carjat (1828-1906) numa
fotografia que se tornou quase alegoria da idade experimental e inamovível da
lírica moderna. Aos dezessete anos, conheci o poeta Mauro Fonseca e topei com a
obra do voyant Rimbaud. Eram tempos férreos e feéricos, como costumam
ser os verdes anos da juventude e como foram os anos de chumbo da ditadura
militar (1964-1985). Talvez por conta disto – e também de tudo quanto ficou
dito nos parágrafos anteriores –, foto e fato se fundiram na memória daquele
distante ano de 1980.
A imagem
daquele jovem sozinho e silencioso, assentado nos primeiros degraus de uma
escada nos fundos de um enorme salão branco – o corpo pequeno, magro e como que
contorcido por um qualquer incômodo físico ou espiritual inominável; os cabelos
em desalinho; calça e camisa despreocupadas por inteiro da moda; um cigarro
transitando nervoso entre a mão e a boca; as pernas recolhidas, talvez pouco à
vontade porque suspensa a errância que lhes era própria; o olhar ora alheio,
ora oblíquo, ora lâmina –, a essa imagem colou-se de forma indelével as
figurações e as lendas em torno de Rimbaud. Em segredo, sem que nem mesmo ele
soubesse, tornou-se um meu Rimbaud pessoal, doméstico, contemporâneo, tangível.
Porque os encontros posteriores com Mauro Fonseca, ao longo dos anos 1980,
acrescentaram àquela imagem primeira outros traços que, de forma equívoca ou
não, depreendia eu das seguidas leituras da obra e da biografia de Rimbaud. O
tempo tratou de corrigir muitos enganos e aplacar algumas ignorâncias em
relação à poética do autor de “Le bateau ivre”.
|
Foto de
Mauro Fonseca [s.d.]
Extraída
de Entre o aborto e o parto: uma antologia
(Juiz de
Fora: Funalfa, 2015)
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Também o
tempo e a madureza que este nos empresta – quer a desejemos ou não – se
incumbiram de apartar os mitos acerca de Rimbaud (a foto) dos traços do amigo
real e próximo Mauro Fonseca (o fato), os quais podem ser abreviados nos
seguintes termos: a alegria provocadora do menino que quebra todos os
brinquedos para inventar outros e resistir na infância; o jeito maladroit para
as coisas da vida prática; a afirmação do caráter heróico de estar à margem da
sociedade burguesa; a ânsia por uma vida de aventuras que o levou a uma
temporada em Rondônia; a crença no caráter demiúrgico da palavra poética,
aferrado que era à ideia doenthousiasmós grego; a ternura desmedida para
com os despossuídos e os simples de coração; o pendor místico, que encontra em
Francisco de Assis a sua mais elevada e cabal inspiração; a melancolia de quem
se confronta com as rodas dentadas de um tempo histórico bárbaro e sem sentido.
Mauro
Fonseca foi, ao mesmo tempo, um menino à cata dasIlluminations que a
poesia pode oferecer aos tempos sombrios e um homem cuja delicadeza não
resistiu às numerosas e agônicas saisons en enfer do século XX. Sobre
ele, não tenho mais palavras a serem ditas, exceto aquelas com que Murilo
Mendes encerra o “retrato-relâmpago” de São Francisco de Assis: “... um inconformista,
um rebelado, um fuorilegge; tal seu mestre”.
Juiz de
Fora, 21 de maio de 2015,
no
aniversário de 53 anos do poeta Mauro Fonseca
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Entre o
aborto e o parto: uma antologia,
obra
organizada pelo filho do autor, Mauro Morais
(Juiz de
Fora: Funalfa, 2015)
Fonte: http://corpoportatil.blogspot.com.br/
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