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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Abandonei-me ao vento - Carlos Nejar




















Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe


quando me levantar e o corpo solte
 
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.


E os seus fragmentos caem na viração
 
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.


Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
 
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Pátria Minha - Vinícius de Moraes

























A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.


Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!


Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!


Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.


Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!


Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.


Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.


Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!


Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.


Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:

"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."














PERISCÓPIO


procuro por mim
aos sobressaltos

como se fora
um bicho
sem tato

procuro por mim
na rua do alto

como se fora
um vídeo
sem fato

procuro por mim
sem trato

como se fora
um sítio
sem rato

procuro por mim
sem recato

como se fora
um índio
sem pacto

procuro por mim
um incauto

como se fora
um lírio
exato

procuro por mim
boato

como se fora
um lixo
um caco.

Cgurgel

domingo, 29 de dezembro de 2013

Ser criança em noite de Natal - Cyl Gallindo

























Tantas vezes a fadiga se desmancha
na mão que faz aurora e faz orvalho
e fez a vida fez o homem e faz verdade.

Tantas vezes a aurora se levanta
expondo as manhãs como crianças
nas peripécias sutis da claridade.

Tantas vezes a vida se acorda
e se joga a fazer a coisa feita
que para colhê-la ao homem bastaria

lançar o coração feito uma rede
a diluir entre nós essa parede
de indiferença erguida a cada dia.

Mas se os dias se vestem destes fatos
dada a colheita de frutos imediatos
tracemos novos rumos sem segredos

que a partir dum crepúsculo universal
igualitários na posse dos brinquedos
sejamos crianças em Noite de Natal.


Brasília, 1986

Árias Pequenas, Para Bandolim - Hilda Hilst

























Antes que o mundo acabe, Túlio,
deita-te e prova
esse milagre do gosto
que se fez na minha boca
enquanto o mundo grita
belicoso. E ao meu lado
te fazes árabe, me faço israelita
e nos cobrimos de beijos
e de flores.

Antes que o mundo se acabe,
antes que acabe em nós
nosso desejo.


Jaú (SP)

sábado, 28 de dezembro de 2013




















ao longo do tempo
preparamos tempestades e fugas
como festejando maturidade e consciência
ao longo do tempo
suportamos ofensas, esquecimentos e partidas
como
se à nós
fosse facultado o direito
da nossa própria desconstrução
ao longo do tempo
perdemos a razão
embrutecidos como uma pedra
caminhamos ao redor de uma mesma montanha
disfarçados por uma armadura
frágil e falsa
ao longo do tempo
acompanhamos como presos
a vida
como só assim
pudéssemos vê-la
ao longo do tempo
partimos
e já não podemos sentir
o gosto alegre da manhã
e da face de uma  lua que reina.
 
Cgurgel

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

NOITE, DIA - Ramos Sobrinho




















Quando me deito,
esperanças
me colam ao peito.

Pela manhã,
recomeça a danação.

Mas
nada aparece
no que falo.

E, aí,
a vida vai
em busca das utopias.

Enquanto
o dinheiro sujo
suga a alma das ruas.



Olinda, 2013.

Arqueologia da Dúvida - Eduardo Diógenes




















silêncio interior
moscas pousam pelos braços
um cachorro dorme
embaixo do caminhão.
o que é sentir
o nada sentir?
se ao mundo
apenas se empresta
o destino, a passagem, o delírio
um boi manso na campina
é mais bonito do que esse homem
que habita em mim.




















Quero elogiar o ser vivo que aspira morrer na chama
Na primavera das noites de Amor.

Onde recebeste a vida, onde a deste
Fixou-se uma estranha vertigem

Perante a chama silenciosa.

Já não ficas encerrada no vazio da sombra.
Um novo desejo te chama
Para um mais alto Amor.

Nenhuma distância te pára.
Voas para Ele fascinada.
E tu, o amante da luz
Nela te queimas como uma borboleta.

Não és mais que uma sombra na noite da terra
Enquanto não tiveres compreendido esta lei:
Morre e transforma-te!


Goethe

Desejos - Carlos Drummond de Andrade




















Esta é a minha maneira de desejar a todos os meus amigos
e amigas um Feliz 2.014!!!!!



Desejo a vocês...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.



quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Mãos Dadas - Carlos Drummond de Andrade




Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens presentes, a vida presente.

Os ombros suportam o mundo - Carlos Drummond de Andrade




Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 
Tempo de absoluta depuração. 
Tempo em que não se diz mais: meu amor. 
Porque o amor resultou inútil. 
E os olhos não choram. 
E as mãos tecem apenas o rude trabalho. 
E o coração está seco. 

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. 
Ficaste sozinho, a luz apagou-se, 
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. 
És todo certeza, já não sabes sofrer. 
E nada esperas de teus amigos. 

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? 
Teus ombros suportam o mundo 
e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios 
provam apenas que a vida prossegue 
e nem todos se libertaram ainda. 
Alguns, achando bárbaro o espetáculo 
prefeririam (os delicados) morrer. 
Chegou um tempo em que não adianta morrer. 
Chegou um tempo que a vida é uma ordem. 
A vida apenas, sem mistificação.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Nona Sinfonia - Ludwig Van Beethoven

Procura da Poesia - Carlos Drummond de Andrade




Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Publicado em 18/12/2013

Dicionário amoroso do Recife - Urariano Mota






Recife (PE) - Leitores pacientes com o colunista, divulgo a seguir um trecho do Dicionário
Amoroso do Recife. 
Este livro é fruto de toda minha vida na cidade, um lugar possuidor de  visco e modo
de ser que acompanhou e acompanha o autor sempre. Pelo menos duas vezes tentei
viver em outras terras, mas em vez de me adaptar  a elas, procurei nas outras alguma
característica que fosse do Recife. É um fenômeno conhecido em todas as paixões
que se rompem antes que se resolvam. Quem perde, procura em outras pessoas
características semelhantes àquela pessoa anterior: um rosto, um nome, um riso,
um igual defeito, um perfume que lembre o bem perdido. Como bem musicou
Capiba nos versos de Carlos Pena Filho:
“Você tem,
Quase tudo dela,
O mesmo perfume,
A mesma cor,
A mesma rosa amarela,
Só não tem o meu amor.
Mas nesses dias de carnaval,
Para mim você vai ser ela,
O mesmo perfume, a mesma cor,
A mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será,
Quando chegar a lembrança dela,
E de você apenas restar,
A mesma rosa amarela”
Assim uma vez em São Paulo, no apartamento de Gildo Marçal, na sala de onde
se via a garoa noturna de São Paulo, uma jovem me arrancou da tristeza
ao declamar Ascenso Ferreira:
"Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz,
`o home dos caranguejo e dos siri!`
Folha verde - Deliciosa meninice das gentes de minha terra,
que eu tanto amei e senti..."
Eu pedia para que ela repetisse, como se fosse música de radiola de ficha: “babá-do-
arroz-doce, sá-biu-dos cuscuz”, porque essa voz dialetal vinha da infância no Recife. E por
isso a jovem em São Paulo me deixava sorrindo feito menino. 
Mesmo em viagens para ficar apenas dois dias em outra cidade, eu sempre quis ir a
restaurantes que servissem comida nordestina. Não era peitica, como falamos os
recifenses, era um cordão ligado ao útero do Recife. Havia sempre em todas as
ruas de outros lugares uma falta, ora do cheiro de mar, ora do Capibaribe, ora do
suco de graviola, de cajá, de feijão com charque e jerimum, das coisas mais
caras que fazem uma identidade. Se estou em João Pessoa, cidade bonita e acolhedora,
na praia de Tambaú descubro com exclamações o restaurante Gambrinus, mesmo
nome do bar que existia na Marquês de Olinda, em nossa juventude. O Recife traz
para mim a situação daquela música de Herivelto Martins, Pensando em ti:
“eu amanheço, eu anoiteço, pensando em ti”, cidade. Nos livros que tento ler
em cada frase o Recife está. Santa cidade, não deixa nem espaço para eu
pensar em Deus. Aliás, se existe, Ele é o Recife...
O leitor já vê que o campo dos significados deste dicionário não foi consideravelmente
apurado quanto à exatidão e clareza. Como pode o coração ser exato? Os significados
neste livro vêm na nuvem da memória e do sentimento. Ou numa tentativa de ser
mais preciso: a memória fala daquilo que a marcou. É sentimemória ou memória
sentimentada. A clareza será percebida pela empatia que a expressão escrita
despertar. Falo para humanos a humanidade do Recife. A clareza, se felicidade eu
tiver, virá daí. A exatidão, se ocorrer, virá da verdade que o dicionarista ousou imprimir
nos verbetes, ou nas definições da alma da cidade que fala à semelhança de verbetes.
Os autores de dicionários falam sempre que, em relação à primeira edição, centenas
de milhares de alterações foram introduzidas em todos os elementos componentes
(com o perdão da rima, mas dicionarista raro sabe escrever) da edição anterior.
Mas neste caso, em que a primeira edição se faz agora, as alterações se registram
nas mudanças da cidade. Como no deslocamento do que antes era “o centro do Recife”,
ou no sentido das translações do carnaval do Recife, que cresceu pela incorporação
do carnaval de Olinda. Ou então no sonho do que foi e teria sido o Teatro Marrocos,
lugar de perdição pelo que dele imaginavam os jovens que não tinham 18 anos ou
dinheiro para vê-lo. Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele, porque
seguem para a transformação da cidade além do espaço físico, porque atingem os
gostos e costumes do Recife.
É claro, como bem acertam os grandes lexicógrafos, “não há como ser definitivo
e muito menos exaustivo no mister da lexicografia”. Alertando para o mister aí,
que não é o paroxítono Mister senhor, mas oxítono como clister, e com o sentido
de senhor ofício ou trabalho, anotamos que o dicionário de uma cidade jamais
será definitivo ou exaustivo. Será de exaustão apenas para quem o faz. Isso
porque a cidade é mais resistente a uma conformação de A até Z, que o
léxico autoriza. Na cidade, mais rápido que na língua, tudo é mudança. 
Por isso, “no que tange à datação do primeiro registro das palavras em português,
pudemos antedatar, por vezes de séculos...”, não, este dicionarista aqui não é de
séculos, apesar de, pelas barbas brancas, haver quem o chame de Papai Noel.
Por isso, depois do Natal, aguardem o Dicionário Amoroso do Recife.

Fonte: 
http://www.diretodaredacao.com/noticia/dicionario-amoroso-do-recife





















ORDENHA


preciso de fugas
pois são elas
que me fornecem 
outras rotas e destinos

preciso de pulgas
pois são elas
que aquecem
minhas portas e sinos

e preciso de rugas
pois são elas
que se esquecem
do tempo e seus hinos.


Cgurgel

Sugestões para Presente - Rita Apoena




















Amor. 
Bolinhas de sabão. 
O som de copos com água. 

O som das gotas no chão.
Um sorriso tímido.
A música por trás dos ruídos.
Um coração encostado no outro.
Um ou dois 'para sempres'.
Um avião nas mãos de um menino.
Um barquinho de papel.
Uma pipa atravessando as nuvens.
Uma sementeira de tulipas.
Um mingauzinho de aveia.
Um par de meias listradas.
Dois ou três cata-ventos.
Uma palavra inventada...

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

América - Allen Ginsberg

























América eu te dei tudo e agora não sou nada.
América dois dólares e vinte e sete centavos 17 de janeiro de 1956.
América não agüento mais minha própria mente.
América quando acabaremos com a guerra humana? Vá se foder com sua bomba atômica.
Não estou legal não me encha o saco.
Não escreverei meu poema enquanto não me sentir legal.
América quando é que você será angelical?
Quando você tirará sua roupa?
Quando você se olhará através do túmulo?
Quando você merecerá seu milhão de trotskistas?
América por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?
América quando você mandará seus ovos para a Índia?
Eu estou cheio das suas exigências malucas.
Quando poderei entrar no supermercado e comprar o que preciso só com minha boa aparência?América afinal eu e você é que somos perfeitos não o outro mundo.
Sua maquinaria é demais para mim.
Você me fez querer ser santo.
Deve haver algum jeito de resolver isso.
Burroughs está em Tânger acho que ele não volta mais isso é sinistro.
Estará você sendo sinistra ou isso é uma brincadeira?
Estou tentando entrar no assunto. Eu me recuso a desistir das minhas obsessões.
América pare de me empurrar sei o que estou fazendo.
América as pétalas das ameixeiras estão caindo.
Faz meses que não leio os jornais todo dia alguém é julgado por assassinato.
América fico sentimental por causa dos Wobblies. [1]
América eu era comunista quando criança e não me arrependo.
Fumo maconha toda vez que posso.
Fico em casa dias seguidos olhando as rosas no armário.
Quando vou ao Bairro Chinês fico bêbado e nunca consigo alguém para trepar.
Eu resolvi vai haver confusão.
Você devia ter me visto lendo Marx.
Meu psicanalista acha que estou muito bem.
Não direi as Orações ao Senhor.
Eu tenho visões místicas e vibrações cósmicas.
América ainda não lhe contei o que você fez com Tio Max depois que ele voltou da Rússia.
Eu estou falando com você.
Você vai deixar que sua vida emocional seja conduzida pelo Time Magazine?
Estou obcecado pelo Time Magazine.
Eu o leio toda semana.
Sua capa me encara toda vez que passo sorrateiramente pela confeitaria da esquina.
Eu o leio no porão da Biblioteca Pública de Berkeley.
Está sempre me falando de responsabilidades.
Os homens de negócios são sérios.
Os produtores de cinema são sérios.
Todo mundo é sério menos eu.
Passa pela minha cabeça que eu sou a América.
Estou de novo falando sozinho.
A Ásia se ergue contra mim.
Não tenho nenhuma chance de chinês.
É bom eu verificar meus recursos nacionais.
Meus recursos nacionais consistem em dois cigarros de maconha milhões de genitais uma literatura pessoal impublicável a 2000 quilômetros por hora e vinte e cinco mil hospícios.
Nem falo das minhas prisões ou dos milhões de desprivilegiados que vivem nos meus vasos de flores à luz de quinhentos sóis.
Aboli os prostíbulos da França, Tânger é o próximo lugar.
Ambiciono a Presidência apesar de ser católico.
América como poderei escrever uma litania neste seu estado de bobeira?
Continuarei como Henry Ford meus versos são tão individuais como seus carros mais ainda todos têm sexos diferentes.
América eu lhe venderei meus versos a 2.500 dólares cada com 500 de abatimento pela sua estrofe usada.
América liberte Tom Mooney. [2]
América salve os legalistas espanhóis.
América Sacco & Vanzetti não podem morrer [3]
América eu sou os garotos de Scottsboro [4]
América quando eu tinha sete anos minha mãe me levou a uma reunião da célula do Partido Comunista eles nos vendiam grão de bico um bocado por um bilhete um bilhete por um tostão e todos podiam falar todos eram angelicais e sentimentais para com os trabalhadores era tudo tão sincero você não imagina que coisa boa era o Partido em 1935 Scott Nearing era um velho formidável gente boa de verdade Mãe Bloor me fazia chorar certa vez vi Israel Amster cara a cara.
Todo mundo devia ser espião. [5]
América a verdade é que você não quer ir à guerra.
América são eles os Russos malvados.
Os Russos os Russos e esses Chineses.
E esses Russos.
A Rússia nos quer comer vivos.
O poder da Rússia é louco.
Ela quer tirar nossos carros das nossas garagens.
Ela quer pegar Chicago.
Ela precisa de um Reader's Digest vermelho.
Ela quer botar nossas fábricas de automóveis na Sibéria.
A grande burocracia dela mandando em nossos postos de gasolina.
Isso é ruim.
Ufa.
Ela vai fazê os ìndio aprendê vermelho. Ela quer pretos bem grandes.
Ela quer nos fazê trabalhá dezesseis horas por dia. Socorro! [6]
América tudo isso é muito sério.
América essa é a impressão que tenho quando assisto televisão.América será que isso está certo?É melhor eu pôr as mãos à obra.
É verdade que não quero me alistar no Exército ou girar tornos em fábricas de peças de precisão. De qualquer forma sou míope e psicopata.
América eu estou encostando meu delicado ombro à roda.



Tradução e notas:  Cláudio Willer, em "Uivo e outros poemas",  L&PM,  2006

O Meu Canto é de Sol - Joaquim Cardozo




O meu canto é de sol. . .
É de verão florindo
Os jardins tropicais:
De túnicas vermelhas
Flamboyants cardeais!
O meu canto é de sol. . .
É de manhã nascente
Em profuso verão:
- Púrpuras de jambeiros
Atiradas no chão!
É de sol, é de sal
Desse mar nordestino
Suas cores abrindo
Como um pavão!
O meu canto é de sol!

Áporo - Carlos Drummond de Andrade




Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape.

Que fazer, exausto,

em país bloqueado,

enlace de noite

raiz e minério?

Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Mundo Grande - Carlos Drummond de Andrade


















Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.