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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Publicado em 18/12/2013

Dicionário amoroso do Recife - Urariano Mota






Recife (PE) - Leitores pacientes com o colunista, divulgo a seguir um trecho do Dicionário
Amoroso do Recife. 
Este livro é fruto de toda minha vida na cidade, um lugar possuidor de  visco e modo
de ser que acompanhou e acompanha o autor sempre. Pelo menos duas vezes tentei
viver em outras terras, mas em vez de me adaptar  a elas, procurei nas outras alguma
característica que fosse do Recife. É um fenômeno conhecido em todas as paixões
que se rompem antes que se resolvam. Quem perde, procura em outras pessoas
características semelhantes àquela pessoa anterior: um rosto, um nome, um riso,
um igual defeito, um perfume que lembre o bem perdido. Como bem musicou
Capiba nos versos de Carlos Pena Filho:
“Você tem,
Quase tudo dela,
O mesmo perfume,
A mesma cor,
A mesma rosa amarela,
Só não tem o meu amor.
Mas nesses dias de carnaval,
Para mim você vai ser ela,
O mesmo perfume, a mesma cor,
A mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será,
Quando chegar a lembrança dela,
E de você apenas restar,
A mesma rosa amarela”
Assim uma vez em São Paulo, no apartamento de Gildo Marçal, na sala de onde
se via a garoa noturna de São Paulo, uma jovem me arrancou da tristeza
ao declamar Ascenso Ferreira:
"Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz,
`o home dos caranguejo e dos siri!`
Folha verde - Deliciosa meninice das gentes de minha terra,
que eu tanto amei e senti..."
Eu pedia para que ela repetisse, como se fosse música de radiola de ficha: “babá-do-
arroz-doce, sá-biu-dos cuscuz”, porque essa voz dialetal vinha da infância no Recife. E por
isso a jovem em São Paulo me deixava sorrindo feito menino. 
Mesmo em viagens para ficar apenas dois dias em outra cidade, eu sempre quis ir a
restaurantes que servissem comida nordestina. Não era peitica, como falamos os
recifenses, era um cordão ligado ao útero do Recife. Havia sempre em todas as
ruas de outros lugares uma falta, ora do cheiro de mar, ora do Capibaribe, ora do
suco de graviola, de cajá, de feijão com charque e jerimum, das coisas mais
caras que fazem uma identidade. Se estou em João Pessoa, cidade bonita e acolhedora,
na praia de Tambaú descubro com exclamações o restaurante Gambrinus, mesmo
nome do bar que existia na Marquês de Olinda, em nossa juventude. O Recife traz
para mim a situação daquela música de Herivelto Martins, Pensando em ti:
“eu amanheço, eu anoiteço, pensando em ti”, cidade. Nos livros que tento ler
em cada frase o Recife está. Santa cidade, não deixa nem espaço para eu
pensar em Deus. Aliás, se existe, Ele é o Recife...
O leitor já vê que o campo dos significados deste dicionário não foi consideravelmente
apurado quanto à exatidão e clareza. Como pode o coração ser exato? Os significados
neste livro vêm na nuvem da memória e do sentimento. Ou numa tentativa de ser
mais preciso: a memória fala daquilo que a marcou. É sentimemória ou memória
sentimentada. A clareza será percebida pela empatia que a expressão escrita
despertar. Falo para humanos a humanidade do Recife. A clareza, se felicidade eu
tiver, virá daí. A exatidão, se ocorrer, virá da verdade que o dicionarista ousou imprimir
nos verbetes, ou nas definições da alma da cidade que fala à semelhança de verbetes.
Os autores de dicionários falam sempre que, em relação à primeira edição, centenas
de milhares de alterações foram introduzidas em todos os elementos componentes
(com o perdão da rima, mas dicionarista raro sabe escrever) da edição anterior.
Mas neste caso, em que a primeira edição se faz agora, as alterações se registram
nas mudanças da cidade. Como no deslocamento do que antes era “o centro do Recife”,
ou no sentido das translações do carnaval do Recife, que cresceu pela incorporação
do carnaval de Olinda. Ou então no sonho do que foi e teria sido o Teatro Marrocos,
lugar de perdição pelo que dele imaginavam os jovens que não tinham 18 anos ou
dinheiro para vê-lo. Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele, porque
seguem para a transformação da cidade além do espaço físico, porque atingem os
gostos e costumes do Recife.
É claro, como bem acertam os grandes lexicógrafos, “não há como ser definitivo
e muito menos exaustivo no mister da lexicografia”. Alertando para o mister aí,
que não é o paroxítono Mister senhor, mas oxítono como clister, e com o sentido
de senhor ofício ou trabalho, anotamos que o dicionário de uma cidade jamais
será definitivo ou exaustivo. Será de exaustão apenas para quem o faz. Isso
porque a cidade é mais resistente a uma conformação de A até Z, que o
léxico autoriza. Na cidade, mais rápido que na língua, tudo é mudança. 
Por isso, “no que tange à datação do primeiro registro das palavras em português,
pudemos antedatar, por vezes de séculos...”, não, este dicionarista aqui não é de
séculos, apesar de, pelas barbas brancas, haver quem o chame de Papai Noel.
Por isso, depois do Natal, aguardem o Dicionário Amoroso do Recife.

Fonte: 
http://www.diretodaredacao.com/noticia/dicionario-amoroso-do-recife


Um comentário:

  1. Salve, poeta Carlos Maia. Em belo espaço você republicou o texto.
    Grato.
    Um novo ano de bom trabalho para você e todos os poetas do Recife.
    Abraços
    Urariano

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