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sábado, 29 de fevereiro de 2020





















Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino
ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra
contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes,
porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas,
os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão a serviço das coisas."
Eduardo Galeano (trecho do Livro dos Abraços)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020





















A CANÇÃO DO ESTRANGEIRO

Estou à procura
de um homem que não conheço,
que nunca foi tão eu mesmo
quanto desde que comecei a procurá-lo.
Teria ele meus olhos, minhas mãos
e todos esses pensamentos semelhantes
aos destroços deste tempo?
Estação de mil naufrágios,
o mar deixa de ser mar,
para tornar água gelada dos túmulos.
Mas, mais longe, quem sabe mais longe?
Uma menina canta a contragosto,
enquanto a noite reina sobre as árvores,
pastora em meio a seus carneiros.
Venham arrebatar do grão de sal a sede
que nenhuma bebida poderá mitigar.
Com as pedras, um mundo se devora
para ser, como eu, de parte alguma. 

Edmond Jabès

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020





















PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse.
Antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.


Carlos Pena Filho

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020





















A SOLIDÃO E SUA PORTA

A Francisco Brennand

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Carlos Pena Filho

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020























SONETO OCO

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.

Carlos Pena Filho

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
















SONETO DA BUSCA

Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.

Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.

Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu para esconder de mim teu busto.

Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.

Carlos Pena Filho

domingo, 23 de fevereiro de 2020




















ABANDONEI-ME AO VENTO

Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe


quando me levantar e o corpo solte
 
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.


E os seus fragmentos caem na viração
 
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.


Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
 
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.


Carlos Nejar

sábado, 22 de fevereiro de 2020





















A MINHA SITUAÇÃO

Me contraponho indefinidamente
É como estar em frente ao espelho
numa simétrica contradição
Os incontáveis eus em um só
resumem a infinitude da unidade
e definem as ambiguidades da individualidade
Olhando nos meus próprios olhos me encontro
Nego os formatos e reinvento as estrelas
Por sentir a doce condição do espaço imensurável


Gilmara Pires

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020


























Somos parte de um continente; se um simples pedaço de terra é levado pelo mar, a Europa inteira fica menor. A morte de cada ser humano me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, não me perguntem por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”

(John Donne, poeta inglês, séc. XVI)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020




















FUNCIONÁRIO PÚBLICO

Exageradamente infeliz.
Prisioneiro.
Longe do sol e da vida,
aqui nesta sala onde ganho o meu pão
e minha vodca.
Onde perco minha felicidade, minha sanidade.
A burocracia vai me enlouquecendo.

Burocrata,
copio a cópia de relatórios técnicos
que mesmo copiado são revisados.
Relatórios técnicos
que nada tem a dizer,
a não ser: tédio, vaidade, futilidade.

A tristeza me invade como uma onda
onde afogo-me de corpo, alma e desespero.
Preciso do mar, preciso do sol, preciso sorrir.
Preciso da música e beber qualquer coisa que contenha álcool.
Libertar meus olhos da tela do computador,
o meu corpo da sala com ar-condicionado,
a minha alma da catraca do ponto,
fugir da monotonia, da monotonia, da monotonia…

Itárcio Ferreira

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020


Arte de Nazar Bilik 

Amanhã começo
A dieta do riso
O estudo do idioma
Do silêncio

Hoje é lágrima
Na boca
Palavra saltando
Dos olhos.

Adriane Garcia

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020



















A ESPANTOSA REALIDADE DAS COISAS

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes ouço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020



















A MONTANHA POR ACHAR

A montanha por achar
Há de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver,
Quando o encontrar, há de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe,
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade,
Porque a vida é só metade.

Fernando Pessoa

domingo, 16 de fevereiro de 2020




















A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO

A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.


Fernando Pessoa

sábado, 15 de fevereiro de 2020






















AO LONGE, AO LUAR

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


























ÀS VEZES

Às vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto?  Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

Fernando Pessoa

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020



















APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. 

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio? 

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. 

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária. 

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020




















BALADAS DE UMA OUTRA TERRA

Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...


Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020


























O MEU OLHAR É NÍTIDO COMO UM GIRASSOL

II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
 
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
 
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
 
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020


























ATRASO PONTUAL

Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vêm sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?


Paulo Leminski

domingo, 9 de fevereiro de 2020


























O SENTIDO DA VIDA
Ivan Marinho
Há quem procure agulha num palheiro
E há quem encontre sem a procurar.
Há, também, quem no escuro encontre a luz
E quem com a luz não consiga se encontrar.
Tambores que ressoam no infinito,
Trombetas que anunciam o trovão:
O fim, talvez, ou mais um reinício
Sem criatura ou criador, só criação.
O gado pasta e vai ao matadouro.
Anônimos transitam solitários.
Na contramão da vã publicidade
Reclamam , por asilo, visionários.
E a mão do tempo esculpe a pedra fria
E o fim, como a origem, se esvazia
Com o abismo, distante, a lhe chamar.
E a vida, que rasteja por sentido,
Descobre que o sentido é o que se dá.
Em "Sortilégio Possível", 2012
Imagem: © Diggie Vitt / After

sábado, 8 de fevereiro de 2020

















DÁ-ME A TUA MÃO

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar

como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020























“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.”

“Já que se há de escrever... que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”

“A palavra é meu domínio sobre o mundo.”

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

“Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.”

“E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano.”

“Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.”

Clarice Lispector

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020























“Não suporto meios termos. Por isso, não me doo pela metade. Não sou sua meio amiga nem seu quase amor. Ou sou tudo ou sou nada” 

“Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto. A vida é para quem é corajoso o suficiente para se arriscar e humilde o bastante para aprender.”

“Sorrisos e abraços espontâneos me emocionam. Palavras até me conquistam temporariamente. Mas atitudes me ganham para sempre.”

“Sabe o que eu quero de verdade? Jamais perder a sensibilidade, mesmo que às vezes ela arranhe um pouco a alma. Porque sem ela não poderia sentir a mim mesma...”

“Eu sou uma eterna apaixonada por palavras, música e pessoas inteiras. Não me importa seu sobrenome, onde você nasceu, quanto carrega no bolso. Pessoas vazias são chatas e me dão sono.”

Clarice Lispector.