Translate

sábado, 25 de outubro de 2014

















LÁPIDE 1 
epitáfio para o corpo 

Aqui jaz um grande poeta. 
Nada deixou escrito. 
Este silêncio, acredito 
são suas obras completas. 

LÁPIDE 2 
epitáfio para a alma 

aqui jaz um artista 
mestre em disfarces 

viver 
com a intensidade da arte 
levou-o ao infarte 

deus tenha pena 
dos seus disfarces


Paulo Leminski

quinta-feira, 23 de outubro de 2014




















A rua dos cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Mário Quintana




















PATRIOTISMO A MEU MODO
Minha bandeira
é meu coração,
mas olho com amor
a pupila azul
da bandeira da pátria
procurando por mim;
minha pátria
é meu coração;
mas olho com pena
as pálpebras verdes
da bandeira da pátria
se fechando por mim.
Alberto da Cunha Melo

quarta-feira, 22 de outubro de 2014


















No dia da eleição


Eu ouço o gemido da democracia, no dia da eleição.
As ruas estão cheias de promessas falsas, no dia da eleição.
Os canalhas votam, os santos votam, no dia da eleição.
Os mortos disparam sua fúria, no dia da eleição.

Charles Bernstein



















DIA DO POETA
Certa vez,
ouvi de uma namorada:
gostei do brilho dos seus olhos
quando você fala,
da maneira do seu caminhar,
das suas pausas
olhando um ponto perdido ao longe,
você
concentrado numa réstia de sol
sobre o chão
e entre as folhagens,
olhando as formigas,
relembrando o canto das cigarras no jardim botânico,
gostei
das páginas do seu romance
que fala de moças lendo poemas
às cinco da tarde;
a sinfonia que muito o emociona ...
Achei isso estranho.
Nunca mais a procurei,
penso que ela só não gostou de mim.
RAMOS SOBRINHO - 20.10.2014

terça-feira, 21 de outubro de 2014




















CARA  PÁLIDA


O que te incomoda,

cara pálida,

é que índios, negros, brancos,

mestiços periféricos,

fodidos a vida inteira

possam,

um dia,

romper a cortina de lona

desse circo-hospício

de brutal segregação colonial,

à moda brasileira,

religiosa, quadrilheira, servil,

escrota,

cuja fortuna é feita na moita.




RAMOS   SOBRINHO  -  2014

sexta-feira, 17 de outubro de 2014




















Certeza


Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses.

Octavio Paz, in "Dias Hábeis"
Tradução de Luis Pignatelli




















quando eu tiver setenta anos 
então vai acabar esta minha adolescência 

vou largar da vida louca 
e terminar minha livre docência 

vou fazer o que meu pai quer 
começar a vida com passo perfeito 

vou fazer o que minha mãe deseja 
aproveitar as oportunidades 
de virar um pilar da sociedade 
e terminar meu curso de direito 

então ver tudo em sã consciência 
quando acabar esta adolescência



Paulo Leminski

quinta-feira, 16 de outubro de 2014




















O Antinarciso
Esse estranho que mora no espelho
(e é tão mais velho do que eu)
olha-me de um jeito de quem
procura adivinhar quem sou.
Mario Quintana,
in Caderno H

quarta-feira, 15 de outubro de 2014




















CHEIROS
Cheiro de flor
Cheiro de amor
Cheio de cor
Cheiro de terra
Quando é seca e cai a chuva
Como somos privilegiados
Poder sentir esse cheiro contigo ao meu lado
Cheiro calado
Teu perfume exalado
Conheço de longe
No mais distante alcançar
Cheiro alegrado
De amor combinado
Letrado ou sem letra
O que importa é chegar logo a sexta
Cheiro da flor da paineira
Alegrando a casa inteira
Coisa gostosa que é
E ainda vindo junto com cheiro de café
Cheiro da saliva do teu beijo
Depois de comer um queijo branco
Feito na fazenda e curtido em dias de descanso
Ah, tem muito cheiro bom
Mas o seu vem com cheiro de chocolate
Puro deleite e infarte
LUCILA ISIPON

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Carta de Paris - Ana Cristina César



















Carta de Paris

Ana Cristina César

I

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

II

Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra.

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!


Ana Cristina Cesar
, ou Ana C., como era conhecida, nasceu em 1952 nesta cidade do Rio de Janeiro. Após 1968, passou um ano em Londres, fez algumas viagens pelos arredores e, na volta, deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, e saiu na antologia "26 Poetas Hoje", de Heloísa Buarque. Publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado em comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes: "Cenas de Abril" e "Correspondência Completa". Dez anos depois voltou à Inglaterra, graduou-se em tradução literária, escreveu muitas cartas e editou "Luvas de Pelica". Trabalhou em jornalismo, televisão e escreveu "A Teus Pés", Editora Ática - São Paulo, 1998. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.

Ítalo Moriconi escreveu: "Ana Cristina dizia que uma das facetas do seu desbunde fora abandonar a idéia de ser escritora, livrar-se do que ela naquele momento julgava ser sua face herdada, o estigma princesa bem-comportada, alguém marcada para escrever".

Texto extraído do livro “Inéditos e dispersos”, Editora Ática – São Paulo – 
1985 – pág. 283.


segunda-feira, 13 de outubro de 2014




















ela sonhou que era uma onça parda
              uma pantera
              um grande felino saltando
              & ela é

              jovem, esguia, sem filhos
              à maneira de um gato selvagem
              no escuro, na noite
sentindo nas patas o impacto
fazendo o turno
             curvando-se para os lados – direita –
esquerda
             saltando & arqueando
os longos lombos relaxados
a graciosa cauda em seguida
– como ela me contou
             (caminhávamos na íngreme
             trilha escura da montanha)

seus olhos alegres dançavam como
            ela, saltavam
            como ela no sonho
            que ela me contou
depois, abrigados numa encosta
nos enroscamos num canto & eu
beijei suas tímidas tetas
             com um mordisco, & nós
             rosnamos & ronronamos


Gary Snyder

domingo, 12 de outubro de 2014


















ó
Senhora dos Gatos Selvagens
Dama da Artemísia
                  por que brincas comigo?

                  mostra-me
                                   tu
a ti mesma
em tuas mil aparências

púbis, olhos, flancos, garras
arcos
braços erguidos
suave cavidade atrás dos joelhos

                  doces & salgados de
                  lábios & gargantas

                  átrios da densa canção da carne

por que trapaceias comigo
soberana dos Sabores, ilusão

                   cuja beleza real

                   é nenhuma?


Gary Snyder


Retrato - Cecília Meireles




























Eu não tinha este rosto hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem lábio amargo
Eu não tinha estas mãos sem forças,

Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014






















MELHOR ASSIM
Melhor sem mim
Meu tempo é para mim.
Faço o que estou a fim
Sinto o amor e zelo que não tiveram por mim
Cuidar de minha alma assim ela se acalma
Preencho meus dias com coisas que me façam feliz
Rir dos erros de uma eterna aprendiz
Erros que eu mesma fiz
Já não carrego toda aquela ânsia
Hoje meus desejos são julgados obsoletos
Coisas simples
Mas sinceros
Melhor que amor a dois
Melhor deixar para depois
Hoje entendo muita coisa
E ainda tenho muito a entender
Aprendi a ver com outros olhos as lindas paisagens
Coisas antes tão despercebidas ao meu olhar
Hoje me deixam em completo êxtase e fora do ar
Aprendi que o que carregamos de bonito ou feio
São feitos de puro recheio do que nos vão adentro
Calei meus sentimentos para algumas coisas
Só não deixo de rir
De sonhar
De pensar
De viver
Não mais como antes
Hoje sei que o que tenho é mais que bastante!!
LUCILA ISIPON

Sensações - Paula Fernandes

Seio de Minas - Paula Fernandes

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

















Lindo rosto angelical
Em transe pela manhã,
Manhã de sol, filtrado
Entre as folhas e flores
Do quintal.
Primavera no ar...
O orvalho ainda gotejando
Nas pétalas das rosas,
Manhã
De anjos alegres e travessos
Que brincam no quintal
Sobem nas mangueiras
E fazem carinho
Neste teu rosto lindo,
Neste sol dos teus olhos!
Ah!...
Vem pra cá,
Senta na grama
E deixa eu deitar
Minha cabeça
No teu colo!

Carlos Maia.

Pink Floyd - Wish you were here

U2 - Pride























DA ADORAÇÃO EXPECTANTE IV

                                                         Ângelo Monteiro

Por sobre um mundo plano e tão conforme,
sem vastidões, sem ondas, sem mistério,
foi que tu, confidente dos abismos,
confabulaste com o meu ser eterno.

E despertaste em mim o amor do abismo
ou essa vocação ilimitada
que temos para amar os imprevistos,
para enfrentar sorrindo o próprio nada.

Contra o carbono dos surrados dias,
a desfiarem seu tédio e seu cansaço,
apontaste a voragem por espaço

e as longínquas paragens de onde viemos,
totais e puros: toda esta magia
que, faltos de paixão, adormecemos.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014




















EU DEIXARA ESTE VERDE COMO HERANÇA

                                                                          Ângelo Monteiro

Eu deixara este verde como herança,
se do peso do verde, libertado,
pudesse o mar em mim enclausurado,
rebentar as barreiras da esperança.

Ó ditoso país da remembrança,
cujo mar não me afoga, mesmo irado.
Mas se divide em dois, e desmembrado,
abre lúcida margem que me alcança.

Tal não é este mar, sempre agitado,
que trago dentro em mim, capturado,
na fé, no amor e na desesperança.

Como quem traz em si a força e o fado.
E, posto que este mar seja sonhado,
eu vos deixo o seu verde como herança.





















OS FILHOS DA ÉPOCA

                                    Wislawa Szymborska

Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas – minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra – político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

Tradução: Ana Cristina Cesar
em colaboração com a polonesa Grazyna Drabik.