Translate

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Oh My Love - John Lennon Tradução

Fagner - Jura Secreta




























FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Florbela Espanca

Fagner - Fumo

Traduzir-se - Fagner




























POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
                                                               [sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, 

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? 

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

ASA PARTIDA - FAGNER - (1976)






















Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.

Fernando Pessoa

Conflito - Raimundo Fagner (1976)






















Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.


Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.

Fernando Pessoa

Ponta do Lápis - Fagner e Ney Matogrosso

















AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. 

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa


















CINO

Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,
Mas é tudo a mesma coisa;
E cantarei ao sol.

Lábios, palavras, e lhes armamos armadilhas,
Sonhos, palavras, e são como jóias,
Estranhos bruxedos de velha divindade,
Corvos, noites, carícia:
E eis que não o são;
Já se tornaram almas de canção.

Olhos, sonhos, lábios, e a noite vai-se.
Em plena estrada, uma vez mais,
Elas não são.
Esquecidas, em suas torres, de nossa toada,
Uma vez por causa do vento, da revoada
Sonham rumo de nós e
Suspirando dizem, "Ah, se Cino,
Apaixonado Cino, o de olhos enrugados,
Alegre Cino, de riso rápido.
Cino ousado, Cino zombeteiro,
Frágil Cino, o mais forte de seu clã bandoleiro
Que bate as velhas vias sob o sol,
Se Cino do alaúde aqui voltasse!"

Uma vez, duas vezes, um ano -
E vagamente assim se exprimem:
"Cino ?" "Oh, eh, Cino Polnesi
O cantor, não é dele que se trata ?"
"Ah, sim, passou uma vez por aqui,
Sujeito atrevido, mas...
(São todos a mesma coisa, esses vagabundos)
Peste! As canções eram dele ?
Ou cantava as dos outros ?
Mas e o senhor, Meu Senhor, como vai sua cidade ?"

Mas e senhor, "Meu Senhor", bá! por piedade!
E todos os que eu conhecia estavam fora, Meu Senhor, e tu
Eras Cino-Sem-Terra, tal como eu sou,
O Sinistro.

Já celebrei mulheres em três cidades.
Mas é tudo a mesma coisa.
E cantarei do sol.

...eh?... a maioria delas tinha olhos cinzentos,
Mas é tudo a mesma coisa, e cantarei do sol.
"Pollo Phoibeu, panela velha, tu,
Glória da égide do Zeus do dia,
Escudo d'azul aço, o céu lá em cima
Tem por chefe tua rútila alegria!

Pollo Phoibeu, ao longo do caminho,
Faze do teu riso nossa chanson;
Que teu fulgor ofusque nossa dor,
E que o choro da chuva tombe sem som!

Buscando sempre o rastro recente
Rumo aos jardins do sol...
..............................................
Já celebrei mulheres em três cidades
Mas é tudo a mesma coisa.

E cantarei das aves alvas
Nas águas azuis do céu,
As nuvens, o borrifo de seu mar.

Ezra Pound
(Tradução de Mário Faustino)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015






















TENZONE

Será que as aceitarão ?
          (i.é., estas canções).
como tímida fêmea perseguida por centauros
          (ou por centuriões),
Elas já vão fugindo, urrando de terror.

Ficarão comovidos pelas verossimilitudes ?
           Sua estupidez é virgem, é inviolável.
Eu vos imploro, meus críticos amistosos,
Não saiais por aí procurando-me um público.

Deito-me com quem é livre em cima dos penhascos;
             os recessos ocultos
Já têm ouvido o eco de meus calcanhares
             na frescura da luz
             e na escuridão.

Ezra Pound
(Tradução de Mário Faustino)

domingo, 27 de dezembro de 2015

Cat Stevens - Wild World

Pink Floyd - Wish You Were Here (Legendado) (Into the Wild)

Cat Stevens - Father and Son (Legendado em Português)

Beethoven - 9ª Sinfonia "Coral" Ode à Alegria (An die Freude) legendado (Deutsch/Português)


















SAUDAÇÃO SEGUNDA

Fostes louvados, meus livros,
           porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
           e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
           Não renegueis vossa progênie.

Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

"Então é isto", dizem eles, "o contra-senso
            que esperamos dos poetas?"
"Onde está o Pitoresco?"
            "Onde a vertigem da emoção?"
"Não ! O primeiro livro dele era melhor."
            "Pobre Coitado ! perdeu as ilusões."

Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro !
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes !)
Ide e dançai despudoradamente !
Ide com travessuras impertinentes !

Cumprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guisos, vossos confetti.
Ide ! rejuvenescei as coisas !
Rejuvenescei até The Spectator.
          Ide com vaias e assobios !

Dançai a dança do phallus
          contai anedotas de Cibele !
Falai da conduta indecorosa dos Deuses !

Levantai as saias das pudicas,
          falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais
          e que viverei eternamente.

Ezra Pound
(Tradução de Mário Faustino)

A Saga Crepúsculo: Amanhecer -- Parte 1

The Twilight Saga HD Carmina Burana O Fortuna-Techno Remix- Carl Orff --Epic BATTLE- Music Vídeo





















E ASSIM EM NÍNIVE

"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

"Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."

Ezra Pound
(Tradução de Augusto de Campos)

Carmina Burana - O Fortuna | Carl Orff - André Rieu




























ENVOI (1919)

Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.

Ezra Pound
(Tradução de Augusto de Campos)

10000 singing Beethoven - Ode an die Freude _ Ode to Joy

Beethoven - Sinfonia n.º 9 - "Allegro"

sábado, 26 de dezembro de 2015

Ednardo - Sinal dos Tempos

para quem não tiver coragem e deleite em ler todo o poema a seguir




























NA FLORESTA DO ALHEAMENTO (Trecho)

Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas - de realidade que era, a ilusão - assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...

Fernando Pessoa





















NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há-de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente! ...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou actual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita...
Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...
Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro.
As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!...
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... - rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas...
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada - tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais...
Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza rectângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas - de realidade que era, a ilusão - assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar...
Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão - e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima...
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...


Fernando Pessoa





















PARA SER GRANDE, SÊ INTEIRO

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis (Fernando Reis)





















II - O MEU OLHAR (O GUARDADOR DE REBANHOS)

O meu olhar é nítido como um girassol. 
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.  Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)                 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)






















RETRATO CAMPESTRE

Havia na planície um passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.

Carlos Penna Filho




















Hegel

Minto para tecer palavras,
Inventar dialetos.
Minto como um livro édito
E sua tradução de cogumelos.
Minto como a noite insuspeita
No alvorecer dos instintos.
André Rosa



























DEPOIS DA CHUVA

Sobre a areia molhada surgem ideogramas
de pés de galinha. Olho para trás
mas não vejo nem santuário nem asilo de aves.
Terá passado um ganso cansado, ou talvez manco.
Não saberia decifrar aquela linguagem
ainda que fosse chinês. Uma simples aragem
a apagará. Não é verdade
que a Natureza seja muda. Fala ao deus-dará
e a única esperança é que não se ocupe
muito da gente.

Eugênio Montale
(tradução: Geraldo Holanda Cavalcanti)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015




























SOLIDÃO

Se me afasto dois dias
os pombos que bicam
na minha sacada
começam a se agitar
seguindo as instruções corporativas.
Ao meu regresso a ordem se refaz
com suplemento de migalhas
e para desapontamento do melro que faz a naveta
entre o respeitado vizinho de frente e eu.
A tão pouco se reduziu minha família.
E há quem tenha uma ou duas, que esbanjamento meu Deus!

Eugênio Montale
(tradução: Geraldo H. Cavalcanti)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015





















Flor e espinho

E vem o amor com seus rompantes
Suas ausências, seus sofrimentos
Trazendo seus zelos, suas impaciências.
E vem o amor, martelo agalopado,
Estragos irreparáveis
Com seus olhos de redenção.
E vem o amor, como se pétala,
Flor e espinho.
E vem o amor, como se desejado hóspede
De farta mesa.
E vem o amor, então.
André Rosa

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015


















                                    Foto: Sinisia Coni

Deus me abre a corcova de pregador
esqueço parábolas.
O ódio acumula no tempo, nos móveis pesados.
Tudo perdi. No entanto, o amor das coisas breves.
No entanto, a ancestralidade.
Com os olhos desfolhados, as mãos cheias de feitiço
póstumas as mãos, a rondar o real além do real.
A neve suja do sol, Simenon, três vidas
a mancha o eixo infinito
do homem ordinário.
Quisera esvair o deserto
chamar de norte o começo
traficar palavras.
Tornei-me a arma
que me cala.
Roberta Tostes Daniel

a-ha - Take On Me

Survivor - Eye Of The Tiger

Guns N' Roses - November Rain

Chuva de Novembro Quando olho nos seus olhos Posso ver um amor reprimido Mas, querida, quando te abraço Você não sabe que sinto o mesmo? Porque nada dura para sempre E nós dois sabemos que corações podem mudar E é difícil segurar uma vela Na chuva fria de novembro Nós já passamos por isto há muito, muito tempo Simplesmente tentando matar a dor, oh, sim Mas amores sempre vêm e amores sempre vão E ninguém tem certeza de quem vai desistir hoje E ir embora Se nós pudéssemos ter um tempo Para acertar tudo Eu poderia descansar minha cabeça Simplesmente sabendo que você foi minha Toda minha Então, se você quiser me amar Então, querida, não se reprima Ou simplesmente vou acabar indo embora Na fria chuva de novembro Você precisa de um tempo só para você? Você precisa de um tempo sozinha? Todo mundo precisa de um tempo para si mesmo Você não sabe que precisa de um tempo Sozinha? Sei que é difícil manter o coração aberto Quando até mesmo todos os amigos pareçam te machucar Mas se pudesse curar um coração partido Não haveria tempo para te encantar? Às vezes preciso de um tempo para mim Às vezes preciso de um tempo totalmente sozinho Oh, todo mundo precisa de um tempo para si Oh, você não sabe que precisa de um tempo sozinha? E quando seus medos se acalmarem E as sombras ainda permanecerem Oh, sim Sei que você pode me amar Quando não houver mais ninguém para culpar Então não se preocupe com a escuridão Ainda podemos encontrar um jeito Porque nada dura para sempre Nem mesmo a fria chuva de novembro Você não acha que precisa de alguém? Você não acha que precisa de alguém? Todos precisam de alguém Você não é a única Você não é a única Você não acha que precisa de alguém? Você não acha que precisa de alguém? Todos precisam de alguém Guns N’Roses

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Simply Red -Say You Love Me






















O SABIÁ

O sabiá canta na terra, não sobre as árvores,
assim disse uma vez um poeta sem asas,
e antecipou o fim de toda vida vegetal.
Existe além disso quem não canta nem sobre nem sob
e ignoro se é pássaro ou homem ou outro animal.
Existe, ou existia talvez, hoje está reduzido
a nada ou quase nada. E já é muito pelo que vale.

Eugênio Montale
(tradução: Geraldo H. Cavalcanti)





















A VÃ RESSURREIÇÃO E A NOITE PLENA

Reacender as lâmpadas.
Com elas reordenar as sombras,
e entre elas cruzar o páteo,
onde há longo tempo jazem sem uso
as telhas derrubadas.
Tirar de novo o barco das amarras,
levantar outra vez ferros e portas.
Atravessar o medo antigo e fundo,
mover os remos outra vez.
De novo desenterrar as vísceras,
atar de novo as cartilagens,
riscar veias.
Retomar os degraus desmantelados,
reassumir o pulso, as mãos, os passos.
Entretanto,
apesar dos esforços,
receber a morte pressentida,
prometida desde muito.
Escutar as notas graves,
que ecoam e ressoam como sombras,
e sentir, para além das cartilagens,
a noite interminável.
Noite franca, aberta e pérfida,
profusa e leve,
escura como as vísceras, corrente;
estendida sem peso sobre a relva,
posta sobre si mesma.
Noite extensa,
fiel e lenta, traiçoeira, múltipla,
fosca e sem cor, eterna e provisória.

Nélson Saldanha





















UM POEMA NATALINO CRUEL

Eu queria dizer alguma coisa pura,
mas a pureza já me abandonou
há muito tempo.

Eu queria dizer alguma coisa nobre,
mas a nobreza cata as latas
de lixo nos porões dilacerados
da minha mente,
e não há mais remédio.

Eu queria dizer alguma coisa esperançosa,
mas a esperança
já abandonou o barco após incontáveis
desapontamentos.

E só me resta a dor,
que procuro sufocá-la através das drogas
e do álcool.

Eu queria desejar um Feliz Natal,
mas a realidade aí fora
é cruel demais e eu não consigo
ignorá-la.

Carlos Maia
23/12/09



















FIM DE 68

Contemplei da lua, ou quase,
o modesto planeta que contém
filosofia, teologia, política,
pornografia, literatura, ciências
exatas ou arcanas. Nele há mesmo o homem,
e eu entre eles. E tudo ë muito estranho.

Dentro de poucas horas será noite e o ano
terminará entre explosões de espumantes
e fogos de artifício. Talvez de bombas e coisas piores,
mas não aqui onde estou. Se alguém morre
ninguém se importa desde que seja
desconhecido e longe.

Eugênio Montale
(tradução: Geraldo H. Cavalcanti)





















RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015




















O Pai (Paisagem amorfa sobre superfície plana)
 
1. [a desculpa]
Por todo esse caminho de ódio
por todo esse chão de abandono
creiam-me, meus filhos
havia uma intenção maior de acudir o mundo
Por isso
tirem-me da cabeça
o perfume das baleias
e o seu candor
Não quero
em inferências
amarrar o tempo
Não quero ditar
com que madeixas amarrar o vento
porque de sol, a vertigem
porque de chão, o suor
porque de lastro, o falar estreito
o fulgor desfeito
o farol
Por isso, filhas de meus caminhos
abracem as estrelas
que passem ao seu alcance
porque viageiras de outras vertigens
Abracem os meus cabelos azuis
meus olhos autóctones
porque únicos
no despenhadeiro da perdição
Abracem as tímidas lágrimas
que um dia irão brotar
como prova do ensinamento aprendiz
Acompanhem seu nascimento
e sua caída louca
como uma intenção suicida

2. [a verdade]
E quando todos olhavam
as marginais imagens
produzidas por meus gestos
E quando todos traziam
por baixo das pálpebras turvas
dos olhos comandados
as armas da censura
E quando todos diziam
em inoportuna voz
dos possíveis erros cometidos
Eu lhes ofertava a parede
com a paisagem à óleo
de brincadeiras ao ar livre
Eu lhes ofertava o livro
com histórias da selva
de animais encantados
Eu lhes manchava de amarelo:
um único ponto
na superfície negra
para que explodissem em luz
Eu lhes entregava
o vaso de flores frescas
roubado da mesa contemporânea
de minha tia Anita
de meu tio Orlando
de minha tia Carmélia

3. [o castigo]
Vieram sobre mim
os lábios poucos de pão
as mãos ávidas de Maria
Vieram sobre mim
as pedras de Madalena
o golpe na única face
o cuspe ácido das estrelas
a corda cheia de cortes
Vieram sobre mim
a culpa pela insônia
por dias de pesadelo
pela agonia da noite
pelas lágrimas de Ester

4. [o discurso]
Há que sair um sol
no céu de infinitas bocas
para incrustar as espécies mínimas
de intenções prosaicas
de todas as línguas
que ao comunicar
transmitem o vírus
da intolerância servil
Hão de perder a coerência
todas as ideias vis
todo discurso alienado
todas as manifestações
em prol da paz e da ordem
de um tempo deserdado
Hão de esvair-se em sangue
as veias abertas pela tormenta
a jugular do medo
a inaproveitável lágrima
Mas há, também
que se encantar com o trivial
os ouvidos autocensurados
por tambores apáticos
por gritos estereotipados

5. [o conselho]
Meus filhos
busquem meu perdido rosto
nos velhos álbuns de fotografias
nos antigos negativos embaçados
guardados por suas famílias
Procurem meu desconhecido rosto
nas paisagens bordadas
por suas avós,
onde sempre constarão um girassol
uma casa, uma cerca, uma árvore
uma montanha, um sol
Busquem meus submergidos rostos
nas ações revolucionárias das crianças
quando saltam as pedras
quando inventam rios
quando constroem cidades imaginárias e fantásticas
quando conseguem enumerar as estrelas


George Pellegrini vive em Castanhal, no Pará. É professor de Literatura Hispanófona da Universidade Federal do Pará e Mestre em Literatura Espanhola pela Universidad de Sevilla. Tem contos, poemas e artigos científicos publicados em jornais e revistas. O poema aqui publicado integra o livro “As Confissões de Plomo” (Ed. Resistência – 2015), vencedor do Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará 2014.