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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015




















O Pai (Paisagem amorfa sobre superfície plana)
 
1. [a desculpa]
Por todo esse caminho de ódio
por todo esse chão de abandono
creiam-me, meus filhos
havia uma intenção maior de acudir o mundo
Por isso
tirem-me da cabeça
o perfume das baleias
e o seu candor
Não quero
em inferências
amarrar o tempo
Não quero ditar
com que madeixas amarrar o vento
porque de sol, a vertigem
porque de chão, o suor
porque de lastro, o falar estreito
o fulgor desfeito
o farol
Por isso, filhas de meus caminhos
abracem as estrelas
que passem ao seu alcance
porque viageiras de outras vertigens
Abracem os meus cabelos azuis
meus olhos autóctones
porque únicos
no despenhadeiro da perdição
Abracem as tímidas lágrimas
que um dia irão brotar
como prova do ensinamento aprendiz
Acompanhem seu nascimento
e sua caída louca
como uma intenção suicida

2. [a verdade]
E quando todos olhavam
as marginais imagens
produzidas por meus gestos
E quando todos traziam
por baixo das pálpebras turvas
dos olhos comandados
as armas da censura
E quando todos diziam
em inoportuna voz
dos possíveis erros cometidos
Eu lhes ofertava a parede
com a paisagem à óleo
de brincadeiras ao ar livre
Eu lhes ofertava o livro
com histórias da selva
de animais encantados
Eu lhes manchava de amarelo:
um único ponto
na superfície negra
para que explodissem em luz
Eu lhes entregava
o vaso de flores frescas
roubado da mesa contemporânea
de minha tia Anita
de meu tio Orlando
de minha tia Carmélia

3. [o castigo]
Vieram sobre mim
os lábios poucos de pão
as mãos ávidas de Maria
Vieram sobre mim
as pedras de Madalena
o golpe na única face
o cuspe ácido das estrelas
a corda cheia de cortes
Vieram sobre mim
a culpa pela insônia
por dias de pesadelo
pela agonia da noite
pelas lágrimas de Ester

4. [o discurso]
Há que sair um sol
no céu de infinitas bocas
para incrustar as espécies mínimas
de intenções prosaicas
de todas as línguas
que ao comunicar
transmitem o vírus
da intolerância servil
Hão de perder a coerência
todas as ideias vis
todo discurso alienado
todas as manifestações
em prol da paz e da ordem
de um tempo deserdado
Hão de esvair-se em sangue
as veias abertas pela tormenta
a jugular do medo
a inaproveitável lágrima
Mas há, também
que se encantar com o trivial
os ouvidos autocensurados
por tambores apáticos
por gritos estereotipados

5. [o conselho]
Meus filhos
busquem meu perdido rosto
nos velhos álbuns de fotografias
nos antigos negativos embaçados
guardados por suas famílias
Procurem meu desconhecido rosto
nas paisagens bordadas
por suas avós,
onde sempre constarão um girassol
uma casa, uma cerca, uma árvore
uma montanha, um sol
Busquem meus submergidos rostos
nas ações revolucionárias das crianças
quando saltam as pedras
quando inventam rios
quando constroem cidades imaginárias e fantásticas
quando conseguem enumerar as estrelas


George Pellegrini vive em Castanhal, no Pará. É professor de Literatura Hispanófona da Universidade Federal do Pará e Mestre em Literatura Espanhola pela Universidad de Sevilla. Tem contos, poemas e artigos científicos publicados em jornais e revistas. O poema aqui publicado integra o livro “As Confissões de Plomo” (Ed. Resistência – 2015), vencedor do Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará 2014.

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