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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020


















AS VIAGENS

Viajo nos livros que faço,
mas sempre torno,
para escrevê-los
onde a vida
é uma menina pobre chorando
entre as moitas.
Trago-a de volta
ao seu colo, sua casa,
até que venha e me leve
o meu amado.

Celina de Holanda

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020


















RETORNO

Este chão é pausa.
Deem-me a infância
para que eu retorne
reencontre meu chão,
seu verde, seus marcos,
seu barro plasmável.

Quero saber de novo
de terreiros limpos
com vassouras verdes

do tempo correndo
branco como um rio,
carregando as roupas
qual nuvens mais alvas.

Massapê das margens,
sapatos de lama,
toalhas de vento
e o regresso limpo,
lento como a tarde.

Celina de Holanda

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020



















Passeio no Parque
(Óleo sobre tela, de Seurat)

Neste parque imutável
até hoje passeiam
estes homens de escuro
e estas frágeis mulheres
Até hoje as flores, os cristais
e as toalhas
são sem mácula
nas salas de esperar
o amigo, o amado
ou a chuva passar. Nada
de apocalipse
a terrível Besta e poços
insondáveis. Nada
a relembrar o abismo
que somos.

Celina de Holanda

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020


POETAS   NO   RECIFE


O  poeta  atravessa
a  ponte
qual  um  cão  atravessa
a  fome,
farejando  as  pedras,

inventa  babilônias
com  ruas  de  poemas
e  jardins  suspensos

contra a tísica  das horas.

E  ninguém  vê.

Ramos Sobrinho

terça-feira, 14 de janeiro de 2020
















"Meu Credo:

É uma bênção especial pertencer entre aqueles que podem dedicar suas melhores energias para a contemplação e exploração de coisas objetivas e atemporais. Quão feliz e grato eu sou por ter recebido essa bênção, que dá um grande grau de independência em relação ao destino pessoal de alguém e a atitude de seus contemporâneos. No entanto, essa independência não deve nos habituar à consciência dos deveres que constantemente nos prendem ao passado, presente e futuro da humanidade em geral.
Nossa situação na terra parece estranha. Cada um de nós aparece aqui, involuntariamente e sem ser convidado, para uma estadia curta, sem saber o porquê e para quê. Em nossa vida diária sentimos apenas que o homem está aqui para o bem dos outros, para aqueles a quem amamos e por muitos outros seres cujo destino está ligado com o nosso. Muitas vezes me perturba a ideia de que a minha vida é baseada em grande parte no trabalho dos meus companheiros seres humanos, e estou ciente da minha grande dívida para com eles.
Eu não acredito no livre-arbítrio. Palavras de Schopenhauer: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”, me acompanham em todas as situações ao longo de minha vida e me reconciliam com as ações dos outros, mesmo que elas sejam bastante dolorosas para mim. Esta consciência da falta de livre arbítrio me impede de levar a mim mesmo e aos meus colegas muito a sério como indivíduos de ação e decisão, e de perder o meu temperamento.
Eu nunca cobicei riqueza e luxo e até mesmo os desprezo de certa forma. Minha paixão pela justiça social muitas vezes me levou a um conflito com as pessoas, assim como a minha aversão a qualquer obrigação e dependência que eu não considero absolutamente necessárias. Eu tenho um grande respeito pelo indivíduo e uma aversão insuperável pela violência e o fanatismo. Todos estes motivos me fizeram um pacifista apaixonado e antimilitarista. Sou contra qualquer chauvinismo, mesmo sob o disfarce de mero patriotismo.
Privilégios com base na posição e propriedade sempre me pareceram injustos e perniciosos, assim como qualquer culto exagerado à personalidade. Eu sou um adepto do ideal da democracia, embora eu saiba bem as fraquezas da forma democrática de governo. A igualdade social e a proteção econômica do indivíduo sempre me pareceram os objetivos comuns importantes do estado.
Embora eu seja um solitário típico na vida diária, a minha consciência de pertencer à comunidade invisível daqueles que lutam pela verdade, beleza e justiça me impede de me sentir isolado.
A experiência mais bela e mais profunda que um homem pode ter é o sentido do mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como de todo esforço sério na arte e na ciência. Aquele que nunca teve essa experiência parece-me que, se não está morto, então, está pelo menos cego.
Perceber que por trás de tudo o que pode ser experimentado há uma coisa que a nossa mente não pode compreender, cuja beleza e magnificência nos alcança apenas indiretamente: isso é religiosidade. Neste sentido, sou religioso. Para mim, basta questionar estes segredos e tentar humildemente entender com a minha mente uma mera imagem da estrutura elevada de tudo que existe”.

Albert Einstein

domingo, 12 de janeiro de 2020





















REFINO
tem nuvens que são amigas das árvores
passeiam pelos seus bosques como se fossem uma réstia de esperança e paz
ao entardecer os bichos que pela margem respiram
procuram encontrar o cheiro da floresta
tentando simplesmente viver
mas é pelo outro lado do mundo
que o tempo se aquece e precisa de calor
igual a quem procura pelo seus sonhos e encontra
fluido é o que o cerrado guarda
como protetor dos nossos olhos
e paisagens
perto da folha que espalha sombra e brisa
assim é o vento que pelos lagos veleja
saudando uma nova manhã
ao recolher sementes e o chamado do que é sagrado e imortal
como uma chuva que chega
trazendo pelos seus ombros
a leve e preciosa estação das flores
aldeia das serpentes dóceis, tão ímãs
como um descanso de quem nunca
desaparecerá
rara fortuna da terra das pessoas que tecem o garimpo
do chão como uma planície
rodeada de estrelas e jasmins.
Carlos Gurgel

sábado, 11 de janeiro de 2020

















VENTURA

voa mensageiro
e leva-nos
para bem longe
onde existir a floresta que nos faça
sonhar novamente
voa ser
sobrevoa nosso tempo
como quem sabe a saída
dos nossos desencontros
plaina ser
socorre nossas digitais
e fogueiras
incineradas dos incensos
daquela gruta noturna e silenciosa
e como um condor
aprisiona nossa dor
onde não existir mais clamor.

Carlos Gurgel

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020



(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
 
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


(Resíduo)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020




















Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020



POESIA

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

Em Sentimento do mundo
São Paulo: Record, 1999

terça-feira, 7 de janeiro de 2020



OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020



MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 5 de janeiro de 2020




















CHUVA DE CAJU

Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
e em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.

Joaquim Cardozo

sábado, 4 de janeiro de 2020




















O MEU CANTO É DE SOL

O meu canto é de sol. . .
É de verão florindo
Os jardins tropicais:
De túnicas vermelhas
Flamboyants cardeais!
O meu canto é de sol. . .
É de manhã nascente
Em profuso verão:
- Púrpuras de jambeiros
Atiradas no chão!
É de sol, é de sal
Desse mar nordestino
Suas cores abrindo
Como um pavão!
O meu canto é de sol!

Joaquim Cardozo

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020





















MAIO

Numa clara visão de céus escampos,
Voltas, enfim, mais pródigo em carinhos:
Ouço mais vozes, Maio, pelos ninhos,
Vejo mais flores, Maio, pelos campos...
Mais insetos reluzem como lampos
Ao teu sol matinal pelos caminhos,
Que os dias vão encher de passarinhos
E as noites vão cobrir de pirilampos.
Ouve, Maio feliz, quando te fores,
Tu que és o mês dos noivos e das flores
E todo coração da terra invades,
Abre-me o seio, as tuas mãos piedosas,
E deixa um pouco dessas tuas rosas,
Para minha alma que só tem saudades.

Benedito da Cunha Melo
(Goiana, 25.03.1911 - Jaboatão dos Guararapes, 06.10.1981)
Coleção Plataforma para a Poesia

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020




















A ESMO

...como é bom ficar distraída
a passar o tempo
olhando o tempo.
Como se o vento , leve brisa
Fosse carregando-me
Infinitamente
Para algum lugar
Sem limites...
Lá sentir-me nuvem...
Doce algodão,
A deslizar no céu
E só passar,passar, passar...


Cecília Villanova