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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014




























INTERLÚDIO

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.


Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.


Deixa o presente. Não fales, 
Não me expliques o presente, 
pois é tudo demasiado.


Em águas de eternamente, 
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.



Fico ao teu lado.


Cecília Meireles

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


















Foto: Flickr


já me matei faz muito tempo 
me matei quando o tempo era escasso 
e o que havia entre o tempo e o espaço 
era o de sempre 
nunca mesmo o sempre passo 

morrer faz bem à vista e ao baço 
melhora o ritmo do pulso 
e clareia a alma 

morrer de vez em quando 
é a única coisa que me acalma


Paulo Leminski

terça-feira, 23 de dezembro de 2014






















RASTRO

Se rastro de pólvora
se areia escura
se cinza funerária
se a visão enganada

não sei.

Olho o chão.

Se poeira do tempo
se sujeira de tudo
se resquícios da festa
se cupim na madeira

apodrece,

e olho o chão.

Por isso mesmo,
apodrece.

E há
cheiro de pólvora
lama e areia
prenúncio de morte
e a cegueira
irreversível...

Como o correr do tempo
como o cansaço de tudo
como a ressaca da festa
como desgasta a madeira

irreversível!

Olho o chão.

Entonteço
e não tombo:
sei mais que antes.


Luciana Cavalcanti
Fonte: http://poesiapouca.blogspot.com.br/


























A palavra como o poema
te engravida, independente das estações,
como qualquer ser engravida,
como a barata imunda
ou a mulher bela de faces de seda.

A semente é a vida
com suas dores,
       seus destinos traçados
       por homens.

O fruto é a luta
- por que aceitar o sofrimento
       como um dom divino? –
expulsa do teu ventre as palavras,
assim nasce o poema
             que se dá ao povo.

Itárcio Ferreira
Fonte: http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014






















"XII'
Dezembro acende as luzes
em ricos pinheiros de natal.
Mas é naquela árvore
solitária nas grotas
ou à beira da estrada
que se agregam bem-te-vis
e tagarelam maritacas.
Mangueira, Santa Bárbara,
Pata-de-vaca
- ao pássaro tanto faz:
folhagens são mimos anônimos.
Eu insisto em um Deus
que se projeta em tronco
e esparrama os braços
para acolher os seus.

Fernando Campanella
Poema da série 'Efemérides'
Fonte: Amália Catarina Wichert Grande



















OS ESTATUTOS DO HOMEM

Artigo I 
Fica decretado que agora vale a verdade. 
agora vale a vida, 
e de mãos dadas, 
marcharemos todos pela vida verdadeira. 

Artigo II 
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III 
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito 
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV 
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 

Parágrafo único: 
O homem, confiará no homem 
como um menino confia em outro menino. 

Artigo V 
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar 
a couraça do silêncio 
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa. 

Artigo VI 
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII 
Por decreto irrevogável fica estabelecido 
o reinado permanente da justiça e da claridade, 
e a alegria será uma bandeira generosa 
para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII 
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX 
Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor. 
Mas que sobretudo tenha 
sempre o quente sabor da ternura. 

Artigo X 
Fica permitido a qualquer pessoa, 
qualquer hora da vida, 
uso do traje branco. 

Artigo XI 
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama 
e que por isso é belo, 
muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII 
Decreta-se que nada será obrigado 
nem proibido, 
tudo será permitido, 
inclusive brincar com os rinocerontes 
e caminhar pelas tardes 
com uma imensa begônia na lapela. 

Parágrafo único: 
Só uma coisa fica proibida: 
amar sem amor. 

Artigo XIII 
Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar 
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
para defender o direito de cantar 
e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final. 
Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
a qual será suprimida dos dicionários 
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante 
a liberdade será algo vivo e transparente 
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre 
o coração do homem. 


Thiago de Mello
Fonte: http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/




















CHUVA
Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece,
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer...
Miguel Torga,
Poesia Completa
Contribuição: Ramos Sobrinho





















JANE RUSSELL
É um simples poema,
apenas,
mas dai-me de beber
a quem tem fome,
e de comer
a quem tem sede,
assim, trocando as letras
da canção de ninar
a uma criança peregrina,
virando a alma pelos avessos
nas distâncias dos caminhos,
os olhos brilhando de prazer,
nas noites estreladas.
RAMOS SOBRINHO - 2014

domingo, 21 de dezembro de 2014




























ENCOMENDA
Desejo uma fotografia
como esta – o senhor vê? – como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.
Cecília Meireles
in Vaga Música
Contribuição: Ramos Sobrinho



É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

Mia Couto

Fonte: http://interludioemflor.blogspot.com.br/



Procura-se um amigo sozinho
de andar discreto e gesto silencioso.
Procura-se desesperadamente um amigo
que saiba se aproximar de um passarinho.

Rita Apoena





















VENTO, ÁGUA, PEDRA

A água perfura a pedra,
o vento dispersa a água,
a pedra detém ao vento.
Água, vento, pedra.

O vento esculpe a pedra,
a pedra é taça da água,
a água escapa e é vento.
Pedra, vento, água.

O vento em seus giros canta,
a água ao andar murmura,
a pedra imóvel se cala.
Vento, água, pedra.

Um é outro e é nenhum:
entre seus nomes vazios
passam e se desvanecem.
Água, pedra, vento.

Octavio Paz
(Trad.Antônio Moura)


sábado, 20 de dezembro de 2014




























POEMA

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                 se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
          bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
        morrem comigo.
Ou não:
       o sol voltará a marcar
       este mesmo ponto do assoalho
       onde esteve meu pé;
                                     deste quarto
       ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
           uma nova cidade
           surgirá de dentro desta
           como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Ferreira Gullar


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
























O SILÊNCIO
Há um grande silêncio que está à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.
Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo
Fonte: Amália Catarina Wichert Grande

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014



















POEMA  NO  NATAL


Os poetas ostentam

a ousadia

de acolher dentro do peito

      a angústia universal,

tudo o que poderia ser

e não foi.

E esse excesso de ruídos nas ruas ...






Ramos Sobrinho   -   2014





















DESEJO DE REGRESSO
Deixa-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.
E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.
Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero a memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!
Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira. . .)
Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas
Fonte: Amália Catarina Wichert Grande

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014






















Natal

Não ouço, daqui, o repicar dos sinos,
nem os coros de natal, nem, sequer,
o alvoroço, que o meu riso de criança
transportava. Eu sei : a infância
perdeu-se no lugar onde nasci.
Contudo, a um canto da memória,
está, ainda, resistindo ao sono,
a menina que fui. E, ano após ano,
aguardo, com ela, um menino jesus,
para sempre adormecido no meu peito.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

terça-feira, 16 de dezembro de 2014



















DE LONGE PARA LONGE

Embora as vejas daqui,
dentro deste mesmo ar,
as velhas catedrais
estão no fundo do mar,
cantando...

Vozes de sinos ou de preces
- é da tua alma que elas,
às vezes, surgem à tona...

E esses velhos caminhos,
embora os vejas daqui
sabes aonde irão dar?

Caminhos são mais antigos
que a redondeza da terra.
Eles não descem os horizontes...
seguem, sozinhos, no ar.

(E ai dos caminhos que levam
de volta ao mesmo lugar!)

Dizem que os deuses morreram?
Um deus sempre está sepulto
PARAhttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png depois ressuscitar...

Viemos do fundo do mar,
no entanto, estamos na Lua...
Mas como se há de parar?

(Homens, sementes ocultas
cujo sonho é germinar...)

E àquele que um dia foi
do antigo Jardim expulso

ofertaremos os frutos
da Grande Árvore Estelar.


Mario Quintana
In Baú de Espantos

Fonte: http://mario-quintana-rh.blogspot.com.br/

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

























Para Jorge Luiz Borges

Eram sete os apóstolos de Cristo
no evangelho apócrifo dos Setenta.

Por sete eram multiplicadas as vidas
dos filhos de Deus,

Antes que Deus se cansasse
de tanta canalhice.

Sete são os labirintos de Borges
e sete as formas de sua leitura.

Vejo que são sete os teus elementos
e sete vezes bela a tua arte.

Sete musas devem ter te inspirado
ou as sete perdidas virtudes humanas.

E, tu leitor, não leias mais que sete vezes
este poema de sete versículos.



Itárcio Ferreira

Fonte: http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/



























CANTO PARA MÃOS PARTIDAS DE VICTOR JARA

Quisera chorar teus dedos dilacerados:
raízes do meu canto subterrâneo.

Quisera chamar-te “Hermano”
como a infância dos rios
lava o rosto da terra,

mas minha boca sangrava
um silêncio de canções amordaçadas.

De tuas mãos se dirá um dia:
geravam pássaros de sangue
como as primaveras da lua.

Tuas mãos,
tristes descendentes das canções araucanas,
tuas mãos mortas,
casa de canções decepadas,

tuas mãos rotas,
últimas filhas do vento,

guitarras enterradas sem canto,
sementes de fuzis,
seara de sangue.

Quisera entregar
minhas mãos inúteis
ao cepo de teus carrascos.

Pedro Tierra


Fonte: http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/

Come Together - Across the Universe (Filme)

domingo, 14 de dezembro de 2014




























Província
Cidadezinha perdida
no inverno denso de bruma,
que é de teus morros de sombra,
do teu mar de branda espuma,
das tuas árvores frias
subindo das ruas mortas?
Que é das palmas que bateram
na noite das tuas portas?
Pela janela baixinha,
viam-se os círios acesos,
e as flores se desfolhavam
perto dos soluços presos.
Pela curva dos caminhos,
cheirava a capim e a orvalho
e muito longe as harmônicas
riam, depois do trabalho.
Que é feito da tua praça,
onde a morena sorria
com tanta noite nos olhos
e, na boca, tanto dia?
Que é feito daquelas caras
escondendo o seu segredo?
Dos corredores escuros
com paredes só de medo?
Que é feito da minha vida?
abandonada na tua,
do instante de pensamento
deixado nalguma rua?
Do perfume que me deste,
que nutriu minha existência
e hoje é um tempo de saudade,
sobre a minha própria ausência?
Cecília Meireles,
in Viagem
Fonte: Amália Catarina

Aos Deuses - Ricardo Reis (Fernando Pessoa)






Aos deuses peço só que me concedam

O nada lhes pedir.  A dita é um jugo

E o ser feliz oprime

Porque é um certo estado.

Não quieto nem inquieto meu ser calmo

Quero erguer alto acima de onde os homens

Têm prazer ou dores.

Relógio de Ponto - Alberto da Cunha Melo






















Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

sábado, 13 de dezembro de 2014






















A antiga casa que os ventos rodearam 
Com suas noites de espanto e de prodígio 
Onde os anjos vermelhos batalharam 

A antiga casa de inverno em cujos vidros 
Os ramos nus e negros se cruzaram 
Sob o Ímã dum céu lunar e frio 

Permanece presente como um reino 
E atravessa meus sonhos como um rio 


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Geografia





















FANTÁSTICA

Ampla se estende a erma planície nua.
Cobre-a o funéreo manto do luar
E cada sombra no chão se recorta
Com nitidez de paisagem lunar.
Mas que imobilidade singular
Que as coisas têm! E que nudez! Aflito,
O ouvido indaga, espera... E nem um grito
Vem o imóvel silêncio apunhalar.
Mostra-se a Lua. A sua enorme face
lembra um disco de prata formidando
que um Titã aos Céus arremessasse;
Vem branca, branca, de um palor que pasma.
E enquanto vai a Lua transmontando
uiva lugubremente um cão fantasma.

Mário Quintana
In A cor do invisível, 1989