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quinta-feira, 7 de novembro de 2019















NOTURNO

desça
caminhe entre os barcos
e a calçada coberta de pó e sem asa
colhe por cima dos telhados
os detalhes dos passos das sandálias
que acompanham o gotejar da saudade e da ausência
ampara
como um arco por onde respira
a existência dos rostos dos pássaros
sem paciência
sobre a crina da noite
escuta o lamento das casas solitárias
e se cala quando aparece o espírito
de tudo que pergunta e vê
alcança com seus saltos
a solidão das pessoas que adormecem
sem roupa e sem sentimento
por sobre a escuridão da cidade
como um mensageiro da vida
que retorna e segue em frente.

Carlos Gurgel

quarta-feira, 6 de novembro de 2019














ESTEREÓTIPO
você diz que a vida infesta
como se dissesse pra mim
que a frase está na testa
o infortúnio de saber essas coisas
é que o fundo onde se encontra
nossos espectros
ele está todo costurado de rumores
como se a pouca lucidez onde
reside a atmosfera de um sorriso
roubasse a hóstia que o capitalismo
espalhou
não se contente com pouco
a serpente que arrebenta seu cérebro
ela está bem próxima dos seus passos
e a ausência que se sente ao redor
da sua mesa tão pungente
é tudo obra
de quem partiu
como uma almofada suicida
que arrasta seus sonhos
para bem longe dos seus ornatos
e tridentes.
Carlos Gurgel

terça-feira, 5 de novembro de 2019




















REFINO
tem nuvens que são amigas das árvores
passeiam pelos seus bosques como se fossem uma réstia de esperança e paz
ao entardecer os bichos que pela margem respiram
procuram encontrar o cheiro da floresta
tentando simplesmente viver
mas é pelo outro lado do mundo
que o tempo se aquece e precisa de calor
igual a quem procura pelo seus sonhos e encontra
fluido é o que o cerrado guarda
como protetor dos nossos olhos
e paisagens
perto da folha que espalha sombra e brisa
assim é o vento que pelos lagos veleja
saudando uma nova manhã
ao recolher sementes e o chamado do que é sagrado e imortal
como uma chuva que chega
trazendo pelos seus ombros
a leve e preciosa estação das flores
aldeia das serpentes dóceis, tão ímãs
como um descanso de quem nunca
desaparecerá
rara fortuna da terra das pessoas que tecem o garimpo
do chão como uma planície
rodeada de estrelas e jasmins.
Carlos Gurgel

segunda-feira, 4 de novembro de 2019
















VENTURA

voa mensageiro
e leva-nos
para bem longe
onde existir a floresta que nos faça
sonhar novamente
voa ser
sobrevoa nosso tempo
como quem sabe a saída
dos nossos desencontros
plaina ser
socorre nossas digitais
e fogueiras
incineradas dos incensos
daquela gruta noturna e silenciosa
e como um condor
aprisiona nossa dor
onde não existir mais clamor.

Carlos Gurgel

domingo, 3 de novembro de 2019
















Procura na tua orelha
meu desaviso abafado,
pendurado do avesso
no extremo do teu brinco aperolado.

Preenche com sopro
cada uma das letras desenhadas,
roubadas sob o som do teu alfabeto ancestral,
impossíveis de serem pronunciadas.

Perpassa o sentido
da bigorna ao estribo, da timpânica à faringe
do meu texto poliglota de dez mil erros.

Desliza com gozo minhas senhas abertas
pela trompa onde Eustáquio corrige
a pressão, a altitude, os horrores.

Boceje, engula
minha mensagem pintada com teus líquidos coloridos.
meus sinais inacabados no teu ouvido, olvido.



Aleksander Aguilar

sábado, 2 de novembro de 2019

Poema - André Breton


Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
Cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.
Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
E os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflete
para moldar o serviço de café da beladona.
 
O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.
 
Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.

Pintura: Salvador Dalí.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019


















APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


Álvaro de Campos