O LADO FATAL
I
Quando meu amado morreu, não pude
acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo
baixo:
"Não acredito, não
acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata
com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim
eu uso.
II
Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula
orfandade.
III
Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado
em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.
IV
Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o
meu também).
Ele abriu os olhos, com ar
deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do
hospital,
e partiu.
Quando se foram também os médicos e
suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu
ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que
costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu
coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada
foice.
Por onde vou deixo o rastro de um
sangue denso e triste
que não estancará jamais.
V
Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre
minha mesa;
em outros, sorri para mim,
apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele
apareça
e me acene com aquele seu gesto
largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua
voz.
Sei e não sei que tudo isso é
impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).
Sobrevivo, mas pela insensatez.
VI
Pensei que estávamos apenas no
começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos
anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito
certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão
curto:
até a porta de entrada, por onde ele
saiu
casualmente como quem vai comprar
jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura,
intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as
maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.
VII
Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um
pouco.
Mas agora que ela me dilacerou a
vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.
Dentro de mim um quebra-cabeças, e
nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.
VIII
O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era
sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de
alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem
data, e disse:
"Somos um só desde
sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um
ato heróico,
acender o cigarro, atender o
telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro
sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?
De algum secreto lugar me vem a
força
para erguer a xícara, acender o
cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara
ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro
andar.
XIX
Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira
que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor
maior que o nosso
mas que nos abrange.
Amado meu, morto agora e para sempre
vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que
me entendia,
as curvas amorosas da boca que
chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam
nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que
estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto,
intransponível muro que me cerca.
X
Nunca tivemos filhos juntos, e ele
reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao
menos.
"Nosso filho é a minha dor de
hoje,
é a fulguração que nos deixava
tontos,
é o novelo da memória que teço e
reteço
nas minhas insônias.
Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e
aceito
como finalmente deve estar sendo,
por inteiro,
na realização de todos os seus
vastos desejos.
XI
O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses
anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não
lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.)
XII
Se me tivessem amputado braços e
pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um
podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio
de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas
espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)
XIII
O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre
nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a
ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança
XIV
Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas
desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto
Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de
não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem
desejoso:
desejava a vida, desejava a morte,
desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz.
Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.
Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.
Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho
baço
onde às vezes penso divisar seu
vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a
minha vida.
XV
Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um
jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.
Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano
nem o místico.
Não quero discutir o preço do
mercado
nem os grandes mistérios da
eternidade.
XVI
Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para
sempre
uma criança morta.
XVII
Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:
quando se desfizer escura a noite
desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.
Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.
- Lya Luft,
em “O lado fatal”. 1988.
(O poema foi escrito para Hélio
Pellegrino
após a sua morte)
(1924-1988).
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